terça-feira, 8 de novembro de 2011

Lully - "Marcha para a cerimónia turca"

A "Marcha para a cerimónia turca" do francês Jean-Baptiste Lully (1632-1687), compositor da corte de Luís XIV de França. Esta marcha faz parte da comédia-ballet em cinco actos, "Le bourgeois Gentilhomme" (1670). A orquestra é a do "Concert des Nations", dirigida por Jordi Savall.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Os "Protocolos dos Sábios de Sião" e "O Avante!"

Um artigo de Jorge Messias publicado recentemente no "Avante!" vem defender a factualidade da infame farsa dos "Protocolos dos Sábios de Sião", um documento forjado pelo antisemita Sergei Nilus na Rússia czarista entre 1902 e 1903, e que dava conta de uma suposta conspiração judaica internacional para o controlo dos destinos do Mundo.
Está hoje amplamente provado que este documento forjado provém da adulteração e combinação de dois textos diferentes, um da autoria do anti-bonapartista Maurice Joly (1829-1879), escrito em 1864, "Dialogue aux Enfers entre Machiavel et Montesquieu, ou la politique de Machiavel au XIXe siècle", onde Joly dava conta de uma suposta conspiração dos descendentes de Napoleão I para controlar o Mundo; e um outro texto retirado da novela escrita em 1868 por Retcliffe, pseudónimo de Hermann Goedsche (1815-1878), "Biarritz. Auf dem Judenfriedhof von Prag", na qual um rabi ficcional pronuncia um discurso de conteúdo semelhante ao encontrado nos Protocolos. Sabe-se que Joly, por sua vez, plagiou Eugène Sue (1804-1857) mais concretamente, a sua obra "Les mistères du peuple".
O carácter perigoso desta falsificação, usada amplamente por Hitler como forma de justificação para a perseguição e extermínio dos judeus europeus, ainda hoje se faz sentir, seja através da perigosa associação dos Protocolos ao mito do Priorado de Sião estabelecida por Lincoln, Baigent e Leigh ("O Sangue de Cristo e o Santo Graal", pp. 234-240), seja nos movimentos extremistas que ainda hoje reproduzem e divulgam este documento espúrio um pouco por todo o mundo islâmico como forma de propaganda anti-Israel, ou ainda em certos tipos de propaganda neonazi.
Nada disto é novo: o que espanta é que o Jorge Messias e os editores do "Avante!" ainda não saibam nada disto. Mas a suprema ironia é termos um documento forjado na Rússia czarista pelo antisemita Sergei Nilus, um documento composto com o fito de propaganda czarista e anti-revolucionária, a ser usado como uma referência verídica pelo periódico revolucionário e comunista "O Avante!".

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Curso "Ciência e Fé"

No próximo semestre, vou leccionar um Curso "Ciência e Fé", para a Escola de Leigos do Instituto Diocesano da Formação Cristã. O curso terá quinze sessões, e decorrerá todas as segundas-feiras das 21h30 às 23h na Igreja de Miraflores (Algés), a partir de 17 de Outubro inclusive, até 6 de Fevereiro. Só não haverá curso nas segundas-feiras de 26 de Dezembro e 2 de Janeiro. A inscrição no curso custa 35€.

Agradeço muito a vossa ajuda na divulgação, uma vez que só se fará o curso se existirem pelo menos 30 pessoas inscritas. O formulário para a inscrição encontra-se aqui.

O curso será composto por vários módulos. Os módulos (ainda não definitivos) serão estes:

I- Introdução: o alegado "conflito" entre a Igreja Católica e a Ciência
II- Filosofia grega e cosmologia grega
III- Filosofia medieval e ciência medieval
IV- Inquisição e Ciência
V e VI - O caso Galileu
VII- A revolução científica
VIII- Darwin e a Igreja Católica
IX- Os Argumentos Cosmológico e Teleológico para a existência de Deus
X- Filosofia da Mente e Inteligência Artificial
XI- Milagres e Ciência
XII- Desafios ao diálogo entre Fé e Ciência

terça-feira, 7 de junho de 2011

Ben Shapiro - Autor de "Primetime Propaganda"



Para os mais distraídos, a actriz que faz de "ministro" do "casamento" lésbico no famoso episódio da série "Friends" é a Candace Gingrich, a activista LGBT, irmã do republicano Newt Gingrich, que se converteu ao catolicismo em 2009. Se o "casting" de Candace para esse papel não é propaganda, então nada é propaganda!

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O riso n'"O Nome da Rosa"

(Cristo sorridente, na Abadia Cisterciense de Lérins)

No último "post", um comentador anónimo perguntava:

«Já conheci muitas abordagens sobre o riso, nunca vi nenhuma caricatura ou retrato de deus ou jesus a rir, jesus riu?"

Quando leio perguntas destas, pasmo-me. Pelo seguinte: como será possível uma pessoa viver mergulhada numa cultura como a nossa, de profundas raízes cristãs, e colocar, sequer, a remota possibilidade de Jesus Cristo nunca ter sorrido. É sinal de um quase total alheamento face à cultura cristã que o rodeia. Não é tarefa difícil elencar, a partir do Novo Testamento, as inúmeras situações nas quais Jesus recorre a trocadilhos, alegorias e situações anedóticas. Também não é difícil montar, através de séculos de arte cristã, a iconografia cristã do riso.

Mais à frente no seu comentário, o comentador anónimo alude ao romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, e mais especificamente à personagem do bibliotecário Jorge de Burgos. Para melhor nos situramos no romance de Eco, eis o troço em questão, no filme de Jean-Jacques Annaud (1986):


Esta cena mostra-nos o confronto entre a personagem Guilherme de Baskerville (Sean Connery) e a personagem Jorge de Burgos (Feodor Chaliapin, Jr.). Guilherme quer ler uma obra de Aristóteles sobre comédia, enquanto que Jorge de Burgos, claramente incomodado com a presença de tal obra no "corpus aristotelicum", condena o riso como incompatível com a piedade cristã. Antes de Jorge de Burgos entrar em cena, enquanto Guilherme de Baskerville e Adso de Melk analisam a obra incompleta dos monges misteriosamente assassinados, um monge sobe para um banco de madeira, assustado com um rato. Os restantes monges riem-se da cena. Mas Jorge de Burgos interrompe o momento lúdico, com a tempestiva frase: "verba vana aut risui apta non loqui" ("não pronuncieis palavras vãs, aptas a provocar o riso").

Quem constrói a sua cultura com base em romances e novelas acaba por ter uma visão algo indirecta, na melhor das hipóteses, ou mesmo errada, na pior das hipóteses, acerca da História. Sem querer tirar valor ao romance como género literário, e Umberto Eco é o meu romancista favorito, é arriscadíssimo fundamentar conhecimentos históricos em romances. Se tomamos a ficção de Eco por retrato fiel da realidade medieval, corremos o risco de pegar em Jorge de Burgos e fazer dele o paradigma do escriba medieval. Para além do facto de que Eco não escreve romances de realismo histórico, preferindo estruturar histórias nas quais a verdade se mistura com a ficção de forma por vezes quase imperceptível, no caso particular da personagem Jorge de Burgos e da sua vontade férrea em manter escondido o livro de Aristóteles dedicado à comédia, o retrato de Eco contrasta fortemente com a verdade histórica, como bem explica o Prof. Jean Lauand:

«Deus brinca. Deus cria, brincando. E o homem deve brincar para levar uma vida humana, como também é no brincar que encontra a razão mais profunda do mistério da realidade, que é porque é “brincada” por Deus. Bastaria enunciar essas teses - como veremos, fundamentalíssimas na filosofia do principal pensador medieval, Tomás de Aquino - para reparar imediatamente que entre os diferentes preconceitos que ainda há contra a Idade Média, um dos mais injustos é aquele que a concebe como uma época que teria ignorado (ou mesmo combatido...) - o riso e o brincar.
Naturalmente, não se trata só de Tomás de Aquino; a verdade é que o “homem da época” [2] é muito sensível ao lúdico, convive com o riso, e cultiva a piada e o brincar [3] . Tomás, por sua vez, situa o lúdico nos próprios fundamentos da realidade e no ato criador da Sabedoria divina.
Assim, diante do panegírico do brincar feito por Tomás - e diante da prática do lúdico em toda a educação medieval - torna-se difícil compreender como um erudito do porte de Umberto Eco [4] possa ter querido situar no centro da trama de seu O Nome da Rosa [5] , o impedimento “medieval” da leitura de um tratado de Aristóteles sobre o riso (e no romance S. Tomás é citado como autoridade respeitada não só pelo abade - p. 48 -, mas também pelo fanático bibliotecário Jorge - p. 158 - , para quem o riso é o pior dos males e está disposto a matar para obstruir o acesso a um livro de Aristóteles sobre o tema - pp. 529 e ss.) [6] . É difícil compreender o empenho de proibir essa leitura de Aristóteles, quando o próprio Aquinate - já solenemente canonizado antes de 1327, ano em que se dá a ação do romance - vai muito mais longe do que o Estagirita [7] no elogio do lúdico...», in Deus Ludens - O Lúdico no Pensamento de Tomás de Aquino e na Pedagogia Medieval

Deste modo, a manobra arriscada (para o leitor incauto) de Eco está em retratar a bizarra personagem de Jorge de Burgos como, ao mesmo tempo, um admirador da obra de um São Tomás de Aquino já canonizado, e um defensor da incompatibilidade do riso com a vida cristã. Atrevo-me a sugerir uma resposta à interrogação do Prof. Lauand, pois parece-me que Umberto Eco faz do bibliotecário Jorge de Burgos uma espécie de tomista imaturo, alguém que admirando a obra de São Tomás, não chegou a compreendê-la a fundo, nomeadamente rejeitando a parte em que o Aquinate faz o elogio do riso. Mas Jorge de Burgos não é um defensor da ignorância, abominando o Estagirita, o Pai dos Filósofos, como quem abominasse toda a cultura pagã ou não cristã, uma leitura que poderia ser feita à luz da propaganda anti-medieval dos nossos tempos. A personagem é bem mais rica do que esses estereótipos superficiais, como costumam ser ricas todas as personagens de Eco: Jorge de Burgos admira Aristóteles, e não pode deixar de admirar o já então (a ficção passa-se em 1327) canonizado São Tomás de Aquino. A desilusão de Jorge de Burgos é para com Aristóteles (e talvez também para com a defesa tomista do riso), a quem o bibliotecário não perdoa a impiedade de ter escrito um livro dedicado ao enaltecer da comédia. Jorge de Burgos, que já tinha construído uma ideia "perfeita" de Aristóteles, não aceita nem tolera que o seu autor favorito tenha dedicado o seu génio e tempo ao estudo da "vã" comédia. Jorge de Burgos dá, assim, um excelente exemplo daquele triste estado da mente, que consiste na negação da realidade, quando esta choca com os nossos preconceitos, estado esse tão bem descrito pelo padre Bossuet: "Le plus grand dérèglement de l’esprit, c’est de croire les choses parce qu’on veut qu’elles soient, et non parce qu’on a vu qu’elles sont en effet." (Traité de la connaissance de Dieu et de soi-même, 1670).
A sofisticação da cultura e da escrita de Umberto Eco não permitem leituras simplistas, como a que o comentador anónimo pretendeu fazer, lendo errada e inadvertidamente, nos pensamentos da personagem Jorge de Burgos, a mente do típico escriba medieval.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

São Tomás de Aquino sobre o lúdico

(Nossa Senhora jogando às cartas com o Menino Jesus - painel de azulejos na nave da Sé Catedral de Beja)

É frequente a crítica que se faz à Igreja Católica por esta ser, alegadamente, uma força de bloqueio às coisas boas da vida e ao divertimento. Essa crítica é absurda, sobretudo no contexto da verdadeira revolução que o cristianismo operou durante a Idade Média, e que lançou as bases para a melhor parte do nosso legado cultural. O humor é um legado medieval. Uma das melhores defesas das virtudes do humor, da brincadeira e dos jogos vem do maior teólogo cristão do período, São Tomás de Aquino.

Eis um excerto do segundo artigo da Questão 168 da parte II-II, no qual São Tomás responde à questão de se não haverá alguma virtude nas actividades lúdicas, "Videtur quod in ludis non possit esse aliqua virtus" (a tradução completa deste artigo encontra-se aqui):

«RESPONDO. Assim como o homem precisa de repouso para refazer as forças do corpo, que não pode trabalhar sem parar, pois tem resistência limitada, proporcional a determinadas tarefas, assim também a alma, cuja capacidade também é limitada e proporcional a determinadas operações. Portanto, quando realiza certas atividades superiores à sua capacidade, ela se desgasta e se cansa, sobretudo porque nessas atividades o corpo se consome juntamente, pois a própria alma intelectiva se serve de potências que operam por meio dos órgãos corporais. Ora, os bens sensíveis são conaturais ao homem. Por isso, quando a alma se eleva sobre o sensível para se dedicar a atividades racionais, gera-se aí certa fadiga psíquica, seja nas atividades da razão prática, seja nas da razão especulativa. Mas a fadiga é maior quando o homem se entrega à atividade contemplativa, porque é assim que ele se eleva ainda mais sobre as coisas sensíveis, embora em certas ações exteriores da razão prática possa haver, talvez, um cansaço físico maior. Em ambos os casos, porém, ocorre o cansaço da alma, tanto maior quanto mais se entrega às atividades da razão. Ora, assim como a fadiga corporal desaparece pelo repouso do corpo, assim também é preciso que o cansaço mental se dissipe pelo repouso mental. O repouso da mente é o prazer, como acima se explanou ao se falar das paixões (I-II, q. 25, a. 2; q. 31, a. 1, ad 2). Daí a necessidade de buscar remédio à fadiga da alma em algum prazer, afrouxando o esforço do labor mental. Nesse sentido, lê-se nas “Conferências dos Padres”, que João Evangelista, quando alguém se escandalizou de o ver jogando com os discípulos, mandou um deles de arco na mão que disparasse uma seta. Depois que ele repetiu isso muitas vezes, perguntou-lhe se poderia fazê-lo sem parar, ao que o outro respondeu que, se assim procedesse, o arco se quebraria. Então, o santo observou que, da mesma forma, a alma se romperia se permanecesse sempre tensa.
Essas palavras e ações nas quais não se busca senão o prazer da alma chamam-se divertimentos ou recreações. Lançar mão delas, de quando em quando, é uma necessidade para o descanso da alma. E é o que diz o Filósofo, quando afirma que “em nosso dia-a-dia, é com os jogos que gozamos de algum repouso”. Por isso, é preciso praticá-los de vez em quando.» (o negrito é meu)

Há algo de elementar que os adversários da Igreja Católica, na sua maioria, ainda não entenderam. A Igreja Católica, propondo um credo exigente (como o são todas as coisas verdadeiras), não poderia manter, durante mais de dois mil anos, o seu imenso apelo se esse credo não respondesse às aspirações mais genuínas do ser humano. Se o divertimento, os jogos, o sentido de humor, são características excelentes do ser humano, a Igreja Católica não teria sobrevivido todo este tempo se não fosse compatível com elas, e se não as encorajasse...
Se Chesterton ainda fosse vivo, e perante o colapso do Comunismo do final dos anos oitenta, ele provavelmente diria que essa ideologia morreu por falta de humor. Os comunistas, ao contrário dos cristãos, eram demasiado sérios. Morreram de tédio, e por essa razão (e por outras) desapareceram da face da Terra.

Tárrega - Capricho Árabe

O norte-americano Jason Vieaux, numa interpretação incrível do "Capricho Árabe", uma peça do espanhol Francisco Tárrega (1852-1909). Vieaux usa toda a gama dinâmica da guitarra, aplicando todos os artifícios expressivos nos sítios certos, nos momentos certos. Quando eu for grande, gostava de tocar assim...

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Patiño - Nevando Está

O guitarrista sueco Göran Söllscher interpreta a peça Nevando Está, do compositor boliviano Adrian Patiño Carpio (1895-1951).

De notar que a peça, em ritmo "fox trot", não foi escrita por Patiño para guitarra. Söllscher interpreta uma adaptação para guitarra da autoria do guitarrista e compositor argentino Eduardo Falú (1923-). Este arranjo de Falú tornou a peça Nevando Está numa das peças favoritas para guitarra clássica. Na minha opinião, a interpretação de Söllscher é uma das mais bem sucedidas. É uma peça riquíssima, quer melódica, quer harmónica, quer ritmicamente. Note-se, no final da execução, o uso da tâmbora, que consiste em percutir o tampo da guitarra, mais especificamente a ponte, usando-se a ressonância do instrumento para acrescentar uma camada de percussão à peça.

A peça original


A interpretação de Falú, autor do arranjo para guitarra

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Barrios - Un Sueño en la floresta

O paraguaio Agustín Pío Barrios (1885-1944), que se auto-intitulava "Agustín Barrios Mangoré" (em honra da cultura Guarani), é um dos mais geniais compositores para guitarra. Há quem o chame o Bach das Américas, mas o estilo de Barrios é suficientemente único e brilhante para não precisar de comparações. Barrios não era apenas um grande guitarrista, era também um grande homem, com uma grande alma. "Un sueño en la floresta", aqui executada pela sua conterrânea Berta Rojas, é uma das suas obras mais notáveis, sobretudo pela beleza das frases em trémolo.

sábado, 28 de maio de 2011

15 de Maio de 2011: o rito antigo de volta a São Pedro!


Quando foi eleito para a cátedra de São Pedro, Bento XVI foi considerado por muitos como um papa de transição. Com seis anos de papado concluídos, Bento XVI não pára de surpreender, refutando os que o viam como um Papa meramente transitório entre João Paulo II e um futuro Papa mais novo (Joseph Ratzinger foi eleito Papa com 78 anos de idade).

No dia 7 de Julho de 2007, Bento XVI encerrou um capítulo doloroso para a Igreja, e escancarou as portas do futuro da liturgia romana, com a promulgação da Carta Apostólica Summorum Pontificum, na qual liberou o uso do rito antigo, agora chamado de "forma extraordinária" da liturgia romana, cuja última edição datava de 1962, durante o Papado de João XXIII. Digo doloroso, porque na esteira de reforma litúrgica que culminou com a publicação do novo missal (agora chamado de "forma ordinária" da liturgia romana) de Paulo VI, não foram poucas as pessoas que quiseram, desde então, manter a prática do rito antigo, enquanto este era abandonado um pouco por toda a parte. E, tragicamente, alguns grupos de católicos, por vezes chamados de "tradicionalistas", associaram a manutenção da prática desse rito à rejeição do Concílio Vaticano II. Alguns mais extremistas, rejeitando não só a reforma litúrgica e o Vaticano II, chegaram ao ponto de dizer que a Sé de Pedro estava vaga desde Pio XII, considerando hereges todos os papas posteriores (são os "sedevacantistas"). Estes movimentos, cuja desobediência a Roma varia em maior ou menor grau, afastaram-se da Igreja Católica, e o seu afastamento gerou feridas. Por outro lado, outros movimentos dentro da Igreja, cuja heresia modernista varia em maior ou menor grau, promovendo consciente ou inconscientemente uma erosão da liturgia (aliás, em contraste com as decisões do Concílio), geraram feridas de sinal oposto. Bento XVI está a colocar um ponto final em tudo isto, dando uma lição, quer aos "tradicionalistas" que desobedecem ao Santo Padre, quer aos hereges "modernistas" que têm promovido, no último meio século, a dissolução da tradição católica, nomeadamente da liturgia.

Bento XVI, em 2007, com a Summorum Pontificum, sarou essas feridas. Bento XVI não iniciou este processo, uma vez que João Paulo II já tinha dado passos importantes no sentido do que veio a ser a Summorum Pontificum (por exemplo, a Carta Apostólica Ecclesia Dei, de 1998). Mas Bento XVI levou o processo até ao fim.

Porque é que tudo isto é importante?
Alguns católicos julgam que isto não passa de saudosismos inúteis. Outros julgam que isto implica o regresso do latim à liturgia. Os equívocos são imensos. O missal de Paulo VI era em latim, e o rito ordinário previa o uso do vernáculo como excepção. Infelizmente, o vernáculo tornou-se regra, a tal ponto que hoje em dia o comum dos fiéis tem enormes dificuldades em pronunciar as mais simples expressões litúrgicas em latim. No espaço de meio século, os católicos praticamente perderam um património litúrgico multissecular, quer simbólico, quer pictórico, quer arquitectónico, quer musical, quer textual, quer gestual.

A depredação litúrgica que se seguiu ao Vaticano II não consistiu numa obediência a esse grande concílio, mas sim numa traição ao mesmo. Hoje em dia, as nossas liturgias estão marcadas pela banalização de gestos espúrios à tradição católica, confusões infindáveis acerca do papel dos leigos e do sacerdote na liturgia, e emprego de formas musicais de tão má qualidade, e de origem tão pouco sacra, que se tornou impossível reconhecê-las como música litúrgica. Deitámos fora um tesouro.

Bento XVI está a recuperar esse tesouro, que todos nós deitamos na lixeira há meio século atrás. Esta recuperação ficará na História como uma das marcas mais indeléveis do seu papado. Mantendo a fidelidade ao Concílio Vaticano II, e à reforma litúrgica que culminou no Missal de Paulo VI (afinal de contas, o rito ordinário, ou seja, principal da liturgia romana), o actual Papa trouxe de volta o usus antiquior, e com ele voltou todo o esplendor litúrgico dessa tradição. Como o Papa explica, a forma ordinária da liturgia romana pode ser enriquecida com a prática da forma extraordinária, e vice-versa. É precisamente a mesma hermenêutica da "reforma na continuidade", aplicada agora à liturgia, que Bento XVI tem aplicado de forma incansável em defesa da correcta leitura do Vaticano II.

Os velhos do Restelo dirão que a forma extraordinária é antiquada. Mas, um pouco como dizia o Chesterton, há algo de curioso acerca das coisas consideradas antiquadas pelos que se acham "modernos". Se uma coisa sobrevive tempo suficiente para ser considerada antiquada pelos "modernos", é porque tem certamente mais valor do que outras coisas que nem sequer sobreviveram para receber esse epíteto dos bem-pensantes do nosso tempo.

Aqui em Portugal, não tem faltado resistência à Summorum Pontificum. Dizem-nos que é porque os portugueses não estão interessados na forma extraordinária, ou porque já se esqueceram do latim. Uma curiosa ironia, visto que, como referi atrás, o rito ordinário, o de Paulo VI, prescreve o latim como norma. Ou seja, os guardiães do rito ordinário não o têm aplicado bem, o que teve com consequência a óbvia erosão da cultura litúrgica dos fiéis. No entanto, cresce de dia para dia o número de católicos desejosos de conhecer e de viver essa experiência litúrgica multissecular que é a forma extraordinária do rito romano.

Na Summorum Pontificum, Bento XVI propôs um período de três anos para se avaliar a eficácia da sua aplicação e para se debaterem eventuais dificuldades. Passado esse período, e depois de realizados três Congressos dedicados ao tema, a Comissão Pontifícia Ecclesia Dei assinou, no passado dia 30 de Abril, a instrução Universae Ecclesiae, tornada pública a 13 de Maio, uma data que certamente não é uma coincidência.

Este documento torna definitiva a liberalização do rito antigo para todos os fiéis que o pretenderem, esclarecendo certos termos e expressões da Summorum Pontificum que tinham recebido interpretações erradamente restritivas. Aguardo com grande expectativa a primeira missa segundo o usus antiquior aqui em Lisboa. Será certamente algo de admirável e memorável!

No passado dia 15 de Maio, quase meio século depois, a forma extraordinária do rito romano regressou à Basílica de São Pedro. Uma data histórica! Foi celebrada Missa Pontifícia no Faldistório, no altar da Cátedra, pelo Cardeal Walter Brandmüller. O facto de ter sido o Cardeal Brandmüller a celebrá-la enche-me de imensa satisfação. Trata-se de um grande historiador, um dos maiores especialistas em história conciliar, e um dos braços direitos de Bento XVI na defesa da interpretação do Concílio Vaticano II segundo a hermenêutica da continuidade, e contra a hermenêutica da ruptura, que pretende fazer do Vaticano II um Concílio contra todos os anteriores. Brandmüller é um dos mais recentes cardeais do Colégio Cardinalício (20 de Novembro de 2010), mas a sua obra publicada é há muito conhecida dos que se interessam por certos temas importantes da História da Igreja, como sejam o caso Galileu, o papel da Igreja Católica na Segunda Guerra Mundial, ou a história dos Concílios.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

A moral viscosa de Passos Coelho

É de se pasmar...
Passos Coelho, aquando da promulgação da Lei do Aborto, manifestou publicamente o seu apoio à dita. Agora, em entrevista dada recentemente à Rádio Renascença, mostra uma posição mais ambígua...

«O presidente do PSD recorda que esteve “há muitos anos do lado daqueles que achavam que era preciso legalizar o aborto - não era liberalizar o aborto, era legalizar a interrupção voluntária da gravidez -, porque há condições excepcionais que devem ser tidas em conta” e não se deve “empurrar as pessoas que são vítimas dessas circunstâncias para o aborto clandestino”.»

Está à vista a estratégia: Passos Coelho quer puxar para o PSD alguns votos do CDS. Mas os eleitores dotados de valores morais que estejam indecisos entre PSD e CDS não se podem deixar enganar. Passos Coelho, procurando passar a imagem de preocupação pela manifesta generalização ("liberalização") do aborto, pelos vistos insiste na sua legalização. Ou seja, insiste na ideia insana de quem um crime pode ser legal. Já para não falar nas famigeradas "condições excepcionais", pois se matar um ser humano inocente é um acto claramente imoral, não se vê onde estão as ditas condições de excepção, ou seja, não se entende quais são as circunstâncias que tornam legítimo matar um ser humano inocente.

Os eleitores não se podem deixar enganar. A moral de Passos Coelho é a mesma de José Sócrates. São políticos profissionais, relativistas, que consideram que a moral se define por consensos alargados e por referendos. Refugiam-se em chavões ambíguos, procuram ao mesmo tempo parecer modernos e responsáveis, e acabam por não ser nem uma coisa nem outra.

E, finalmente, fazem-nos de parvos. Ao que parece, segundo Passos Coelho, algumas mulheres, antes da famigerada lei de 11 de Fevereiro de 2007, eram "empurradas" para o aborto clandestino. Ou seja, não viam outra alternativa para as suas gravidezes senão a de as destruir, matando os seus filhos. E o Estado, que deve fazer, segundo Passos Coelho? Ora é claro: ajudá-las a matar os seus filhos. Isso sim, é serviço público. Não um aborto clandestino, um aborto sem o preenchimento do formulário DS-1845, um aborto sem a assinatura de uma junta médica, sem o carimbo da clínica da Yolanda. Um aborto decente tem todas essas formalidades e mais algumas. Isso é que é um aborto decente.

Assim, que deve o Estado fazer às mulheres que se sentem "empurradas" para o aborto? Ora, deve "empurrá-las" para o aborto legal! Está fora de questão prestar apoio à gravidez e à maternidade! Está fora de questão ajudá-las em questões jurídicas (quando são ameçadas por namorados, familiares ou patrões), ou dar-lhes fraldas e papa para o bebé. Isso não é moderno. Essas tarefas de apoio à maternidade ficam para aqueles grupos de extremistas católicos, para os "talibans da vida".

O Estado presta um nobre serviço: o aborto legal! A destruição legal de seres humanos inocentes, em ambiente hospitalar controlado, e tudo pago pelos contribuintes. Isso é que é modernidade! Mas Passos Coelho, o pós-moderno, para além de querer esse aborto moderno, quer regulamentá-lo mais um bocadinho. Torná-lo um bocadinho menos chocante para os eleitores mais sensíveis, talvez trocando alguns abortos à oitava semana com Mifepristone (RU-485) por abortos à primeira ou segunda semana com Levonorgestrel (vulgo, "pílula do dia seguinte")... Mas sobretudo, o que Passos Coelho quis, com esta entrevista calculista na Rádio Renascença, foi enganar uns quantos potenciais eleitores do CDS, levando-os a votar, de forma incauta, no PSD. Apesar de as sondagens o sugerirem, nem todos os eleitores são parvos.

Adenda (30 de Maio) : Após ler os comentários que foram feitos a este "post", sinto-me obrigado a clarificar o seguinte: este "post" visava criticar o oportunismo político de Passos Coelho, que está claramente a querer ir buscar mais uns quantos votos à direita do PSD, dando na entrevista à RR um ar de "conservador" que choca com o ar de "progressista" que ele quis dar há uns tempos, quando pela primeira vez se pronunciou sobre o tema do aborto. No entanto, este meu "post" não deve ser interpretado como um apelo ao voto no CDS, e vejo que alguns leitores assim o interpretaram (o meu texto permitia essa interpretação). Não critico as pessoas que, de boa consciência católica, queiram votar CDS por causa das várias posições pró-vida desse partido, mas eu não estou em condições de recomendar o voto no CDS, uma vez que não tenho a minha decisão ainda tomada nessa matéria. É sabido que há posições dentro do CDS que não são compatíveis com a Doutrina da Igreja, pelo que a questão não é fácil.

terça-feira, 24 de maio de 2011

IST - 100 anos


Foi ontem! Gostei especialmente dos discursos do Presidente do IST, Prof. António Cruz Serra (por ter dito coisas politicamente incorrectas mas muito verdadeiras), e do discurso do Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Prof. Mariano Gago (pela eficácia de um discurso sintético mas cheio de conteúdo cultural). Os restantes discursos tiveram pouco brilho...
Fez-se também a justa homenagem ao fundador do IST, o Prof. Alfredo Bensaude (1856-1941).

quinta-feira, 19 de maio de 2011

David Gilmour - Marooned


Esta incrível exibição do David Gilmour teve lugar em 2004, por ocasião do 50º aniversário da guitarra Fender Stratocaster. A música Marooned é do álbum dos Pink Floyd, The Division Bell (1994).

domingo, 15 de maio de 2011

Halos e milagres

Fotografia: Agência Lusa

A notícia tem dado que falar. Na passada sexta-feira, no Santuário de Fátima, no momento em que se exibia um filme sobre o Beato João Paulo II, surgiu no céu um halo em torno do Sol. Trata-se de um fenómeno meteorológico bem conhecido, causado pela refracção dos raios solares em partículas de gelo, normalmente pertencentes a nuvens do tipo cirro. O fenómeno da passada sexta-feira causou comoção em vários peregrinos que estavam no Santuário, tendo alguns exclamado espontaneamente: "milagre!"
Assim que os "media" começaram a divulgar o sucedido, logo surgiram os corifeus do materialismo dito "científico", que se apressaram a soterrar as exclamações populares sob pilhas de suposta erudição científica. Falou-se, de forma arrogante e elitista, contra o "povo ignorante" que não saberia o que é um halo ou o que causa um halo. Ora, o mais elementar bom senso obriga-me a distinguir as coisas: até acredito que uma parte do povo não soubesse explicar o mecanismo que provoca o fenómeno meteorológico em discussão. Mas já não acredito que a maioria das pessoas presentes em Fátima nunca tivesse visto um halo, dado que sendo um fenómeno relativamente raro, não é assim tão raro que uma pessoa possa viver uma vida inteira sem o ver.
Eu, que não tenho formação universitária em Meteorologia, quando vi as fotografias não hesitei nem por um instante de que se tratasse de um halo solar. Não me recordo se alguma vez vi um "ao vivo", mas certamente que já tinha visto fotografias de halos, pelo que reconheci logo o fenómeno.
Assim, do grupo de pessoas que em Fátima gritaram "milagre!", será que nenhuma delas tinha visto antes um halo solar? Duvido. E no entanto, essas pessoas gritaram "milagre!". Estarão erradas?
Os auto-proclamados sábios do nosso tempo dizem que sim. Eles pontificam que, havendo uma explicação científica, então não podemos estar perante um milagre. E aqui é que se espalham ao comprido, revelando simultaneamente uma crassa ignorância, quer filosófica quer teológica.

Em primeiro lugar, vamos às definições: a palavra "milagre" vem do latim "miraculum", cuja raiz etimológica remete para o verbo latino "miror", que significa contemplar algo de maravilhoso, de deslumbrante, algo "admirável" (palavra com a mesma raiz que "milagre"). Assim, como se vê, o povo que gritou "milagre", eventualmente desconhecendo a raiz etimológica da palavra, não a aplicou mal, pois a beleza do fenómeno de um halo solar merece ser admirada, e é de facto deslumbrante. Vê-se então o primeiro erro dos opinadores anticristãos, que pelos vistos dominam mal o latim e não sabem de onde vêm as palavras que usam no dia-a-dia. Ora é sabido que a amnésia etimológica faz mal ao raciocínio: não conhecer a raiz e o significado de uma palavra é meio caminho andado para pensar mal, ou pelo menos para não se ser capaz de transmitir correctamente uma ideia. 

Em segundo lugar, vamos à tal objecção dos opinadores anticristãos, que pretendem que um dado fenómeno com explicação científica não pode ser milagroso. Teologicamente, um milagre é entendido como um fenómeno de efeito natural (sensorial, empírico, apreensível pelos sentidos) cuja causa primeira é sobrenatural. Ora se é certo que um fenómeno sem explicação científica pode (escrevi "pode" e não "deve") ter uma causa sobrenatural, e desse modo ser realmente milagroso, já não é verdade o oposto, ou seja, que um fenómeno com explicação científica não pode ter causa sobrenatural.
Defender que a presença de uma explicação científica elimina a presença de causas sobrenaturais implica dois erros filosóficos graves, a saber:
  1. Confundir "explicação" com "causa": nem sempre são a mesma coisa; por exemplo, um médico pode explicar ao seu paciente, através de sintomas e de resultados de exames, que ele padece de cancro, sem no entanto ser necessário, para essa explicação ser eficaz, que o médico explique a causa (ou causas) que geraram o cancro;
  2. Confundir "explicação natural (ou científica)" com "explicação pessoal": o filósofo Richard Swinburne (The Existence of God, 1979) distingue-as deste modo: enquanto que uma explicação natural (ou científica) deduz (como sugeriram Hempel e Oppenheim) um determinado estado (E) a partir de certas condições iniciais (C), e de uma ou mais leis naturais (L), uma explicação pessoal resulta, segundo Swinburne, da "acção intencional de um agente racional".
Enquanto que o primeiro erro é inegável, porque é facílimo encontrar inúmeros exemplos de explicações de fenómenos que não contêm, ou não esgotam, as suas causas, sendo no entanto explicações bastante boas desse fenómeno, já o segundo erro é mais subtil...
Penso que é útil recorrer a um exemplo do dia-a-dia: se eu, depois do almoço, vou ao quiosque da Olá buscar um Magnum Sandwich (algo que, comigo, acontece com uma regularidade quase científica), e se nesse dia me apetecer filosofar enquanto como o gelado, posso chegar aos dois tipos de explicação:
  • Explicação científica: o agregado biológico da espécie "Homo Sapiens", civilmente identificado como "Bernardo Motta", efectuou uma determinada trajectória com origem no assento do local onde almoçou e com destino no local exacto de determinado quiosque da Olá; chegado ao local, o agregado emitiu padrões sonoros que foram interpretados de certa maneira pelo outro agregado da espécie "Homo Sapiens" que estava dentro do quiosque, e na sequência, esse agregado movimentou um agregado feito de farinha, chocolate, leite, aroma de baunilha, e outros aditivos, à temperatura de cerca de -6 ºC, da arca frigorífica na qual se encontrava para a depositar na mão do primeiro agregado biológico, que por sua vez movimentou da sua carteira um conjunto de chapas metálicas (moedas) em direcção às mãos do segundo agregado; nota: não quis enjoar o leitor, mas esta explicação científica poderia ter muitíssimo mais detalhe, e estar repleta de sistemas de equações diferenciais; desse modo, os meus movimentos, os movimentos do vendedor de gelados, e os movimentos de todos os objectos inanimados envolvidos na cena, seriam descritos com adequado rigor físico e matemático;
  • Explicação pessoal: depois de meditar por breves instantes no tamanho da minha barriga, e começando a visualizar mentalmente um Magnum Sandwich fresquinho, levantei-me do local onde almocei e dirigi-me, com confiança e sem vergonha, na direcção do quiosque da Olá, e comprei o gelado; e sim: comi-o sem arrependimento (o arrependimento vem mais tarde, e requer uma balança, ou um cinto que estranhamente ficou pequeno).
O que é preciso compreender, com este simples exemplo, é que isto se aplica a todas as acções efectuadas por agentes livres e racionais. Assim, tais acções, mesmo que puramente mentais, têm uma explicação científica que se pode construir com base em modelos matemáticos. No entanto, essa explicação não é suficiente para justificar a acção humana de forma completa, e a explicação pessoal entra então em campo, a par da explicação científica, e frequentemente é bem mais útil que esta!
O que também é preciso compreender é que mesmo que eu tivesse a melhor e mais precisa das explicações científicas, eu não teria nada para explicar se o meu fito último não fosse o de comer o gelado, e se eu não tivesse decidido pôr em marcha o meu plano gastronómico. A causa última do fenómeno é a minha decisão, que eu vos garanto que é tomada livremente. Outras causas segundas entram no fenómeno, e então temos toda uma panóplia de leis físicas, pois como qualquer ser humano, sou um agente dotado de um corpo físico que está sujeito às restrições e às leis que regem os sistemas físicos.
Está claro que a existência de livre arbítrio, ou seja, da faculdade que todos temos de tomar decisões livres sem estarmos preocupados com o violar de leis da Natureza, é um facto inegável (a não ser pelos loucos dos materialistas), e que nos levaria, entre outras conclusões, à necessidade da existência da alma (ou mente), ou seja, de algo de imaterial em nós, sob pena de não termos real livre arbítrio. Tem que haver algo em nós que, sendo imaterial (e desse modo, fora do âmbito das leis da Natureza), nos permita agir livremente.
Está também claro que o louco do materialista, para negar a todo o custo a existência de coisas imateriais, ou a realidade do sobrenatural, está disposto a vender o seu livre arbítrio se isso for preciso. Para escapar à evidente capacidade que todos temos de tomar decisões livres, e de o fazer a toda a hora sem violar quaisquer leis da Natureza, o materialista vê-se obrigado ao supremo tiro no pé: negar que toma decisões livres, ou afirmar que o livre arbítrio que tomamos como real é uma mera ilusão. Necessariamente, nesse triste estado intelectual, o materialista deve, em coerência, afirmar que o seu próprio materialismo deve ser explicado pelas leis da Natureza, e que portanto, ele não tem qualquer razão para pretender ter razão.

Regressemos ao dito milagre do halo, da passada Sexta-feira, em Fátima. Foi um milagre? Em sentido lato, e de acordo com a etimologia do termo, sim, foi um fenómeno admirável, de rara beleza, e portanto, "miraculoso". No entanto, no sentido teológico estrito, só haverá milagre se Deus, através da Sua permanente soberania sobre toda a Criação, incluindo as "causas segundas", ou seja, as leis da Natureza por Ele criada, decidiu que tal fenómeno meteorológico deveria ter lugar no preciso momento em que se visionava um filme sobre o Beato João Paulo II. Como sabê-lo? Como saber se Deus quis deliberadamente fazer surgir um halo solar na passada sexta-feira àquela hora? Eu julgo que não temos forma de o saber com certeza...
Mas se, no caso de agentes humanos, certamente livres e racionais (uns mais que outros), uma explicação pessoal (da intencionalidade do agente) pode coexistir com uma explicação científica, então, por analogia, não poderia dar-se o caso de um determinado fenómeno, como por exemplo este halo, ter em simultâneo uma explicação pessoal (da intencionalidade de Deus) e uma explicação científica?
Claro que pode. E é esta conclusão filosófica que, em simultâneo, coloca em cautela aqueles que afirmam com total certeza a origem divina do fenómeno, e ao mesmo tempo, refuta os que negam dogmaticamente qualquer causalidade divina por detrás de fenómenos naturais.
O envolvimento do Sol e de cristais de gelo num fenómeno visível na Cova da Iria e arredores faz-nos recordar o muito mais espantoso e feérico fenómeno do 13 de Outubro de 1917. Também esse raríssimo fenómeno tem, julgo eu, uma explicação científica, como fenómeno meteorológico que tudo indica ter sido. No entanto, só mesmo um ateu para, perante a precisão espantosa da previsão (data, hora e local: veja-se que o fenómeno começou no exacto momento em que Lúcia pediu aos presentes para fecharem os chapéus de chuva), afirmar de forma irracional: "coincidência!" É típica a tentação em recorrer à palavra "coincidência" quando não se consegue encontrar, dentro de determinada visão amputada da realidade, uma explicação plenamente naturalista para determinado fenómeno extraordinário.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

13 de Maio de 1917 - Cova da Iria

Na fotografia: Os pastorinhos Jacinta Marto, Lúcia de Jesus e Francisco Marto (Fonte

Testemunho da Irmã Lúcia do Coração Imaculado, nascida Lúcia de Jesus dos Santos (Fátima, 28 de Março de 1907 - Coimbra, 13 de Fevereiro de 2005), acerca dos acontecimentos de 13 de Maio de 1917, na Cova da Iria, por ela vividos, juntamente com os seus primos Jacinta e Francisco Marto:

Andando a brincar com a Jacinta e o Francisco, no cimo da encosta da Cova da Iria a fazer uma paredezita em volta de uma moita, vimos de repente como que um relâmpago.
– É melhor irmos embora para casa. Disse a meus primos:
– Estão a fazer relâmpagos e pode vir trovoada.
E começamos a descer a encosta, tocando as ovelhas em direcção à estrada. Ao chegar mais ou menos a meio da encosta quase junto de uma azinheira grande que aí havia, vimos outro relâmpago e dados alguns passos mais adiante vimos sobre uma carrasqueira uma Senhora vestida toda de branco mais brilhante que o Sol, espargindo luz mais clara e intensa que um copo de cristal, cheio de água cristalina atravessado pelos raios do sol mais ardente. 
Parámos surpreendidos pela aparição. Estávamos tão perto que ficávamos dentro da luz que a cercava ou que Ela espargia, talvez a metro e meio de distância, mais ou menos.
Então Nossa Senhora disse-nos:
– Não tenhais medo, Eu não vos faço mal.
– De onde é Vossemecê? - lhe perguntei.
– Sou do Céu!
– E que é que Vossemecê me quer?
– Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13, a esta mesma hora. Depois vos direi Quem sou e o que quero. Depois voltarei aqui ainda uma sétima vez.
– E eu também vou para o Céu?
– Sim, vais!
– E a Jacinta?
– Também.
– E o Francisco?
– Também, mas tem que rezar muitos terços...
Lembrei-me então de perguntar por duas raparigas que tinham morrido há pouco. Eram minhas amigas e estavam em minha casa a aprender a tecedeiras com a minha irmã mais velha.
- A Maria das Neves já está no Céu?
- Sim está. (Parece-me que devia ter uns 16 anos).
- E a Amélia?
- Estará no Purgatório até ao fim do mundo. (Parece-me que devia ter 18 a 20 anos). 
Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido, e de súplica pela conversão dos pecadores?
– Sim, queremos.
– Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.
Foi ao pronunciar estas últimas palavras «a graça de Deus, etc.» que abriu, pela primeira vez, as mãos comunicando-nos uma luz tão íntima, como que reflexo que delas expedia que, penetrando-nos no peito e no mais íntimo da alma, fazendo-nos ver a nós mesmos em Deus. Que era essa luz; mais claramente que nos vemos no melhor dos espelhos.
Então, por um impulso íntimo também comunicado, caímos de joelhos e repetimos intimamente: «Ó Santíssima Trindade eu Vos adoro; meu Deus, meu Deus, eu Vos amo no Santíssimo Sacramento». Passados os primeiros momentos, Nossa Senhora acrescentou:
- Rezem o terço todos os dias, para alcançarem a paz para o mundo e o fim da guerra.
Em seguida, começou-se a elevar, serenamente subindo em direcção ao nascente, até desaparecer na imensidade da distância. A luz que A circundava ia como que abrindo um caminho no cerrado dos astros, motivo por que alguma vez dissemos que vimos abrir-se o Céu.»,
in Fátima - Altar do Mundo, 2.º volume, Ocidental Editora, Porto, 1954, pp. 63-64.

Este é o testemunho verdadeiro dos acontecimentos daquele dia. Digo verdadeiro, pois dado o que se sabe acerca dos pastorinhos, não é plausível supor que eles mentiram ou alucinaram. Dado o inferno ao qual foram sujeitos, da parte de quase toda a gente, pois queriam à viva força que eles confessassem terem inventado tudo, e dada a sua tenacidade e coragem em manterem o relato fiel do sucedido, o seu testemunho torna-se muito credível. E depois há, claro, a comprovação de que falaram verdade: o milagre de 13 de Outubro de 1917.
Também há quem ache que os pastorinhos mentiram ou alucinaram. Quase sempre, esses cépticos sabem pouco do sucedido na Cova da Iria, não estudaram a personalidade das testemunhas, nem as diatribes às quais foram sujeitos. Dizem esses cépticos que a Igreja é que montou estas fantasias, quando alguns dos primeiros cépticos faziam parte do clero, e tentaram à viva força levar as crianças a negar o sucedido. No entanto, faltam coisas essenciais à tese da aldrabice: motivo (relatar as aparições só trouxe o inferno à vida dos videntes), hábito (na vida dos pastorinhos, deveríamos encontrar outras mentiras ou uma propensão para a fantasia) e cultura (três pastores analfabetos não poderiam ter inventado certos detalhes das aparições, nomeadamente os de teor político).
Os pastorinhos, claramente, falaram a verdade. Nossa Senhora apareceu-lhes repetidas vezes na Cova da Iria. Foram aparições pessoais, apenas vividas por eles, experiências acerca das quais se poderia especular em termos do seu carácter mais ou menos sensorial, mais ou menos interior, mas não menos reais por causa disso. No entanto, para os cépticos, isso não chega. Eles dão mais credibilidade à sua crença céptica (por eles ironicamente considerada como "racional") do que ao testemunho convicto de pessoas mentalmente sãs e sem razões para mentir. Pessoas essas, pelo contrário, com inúmeras razões para não inventar algo semelhante. Em nome desta suposta "mentira", que não lhes trazia qualquer vantagem, correram real risco de vida e foram maltratados várias vezes. Mas testemunhos como este não chegam para certas pessoas convictas da racionalidade do seu cepticismo irracional. Não chega nem o fenómeno de 13 de Outubro de 1917, esse sim público, sensorial, testemunhado por milhares de pessoas de todos os estratos sociais, e previsto pelos pastorinhos para aquela data, hora e local. O fenómeno milagroso desse dia, como cumprimento por parte de Nossa Senhora de uma promessa por Ela feita aos pastorinhos, atesta de forma clara a realidade e a verdade das aparições marianas na Cova da Iria, assim como a verdade dos testemunhos dos pastorinhos.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Te lucis ante terminum

O cântico "Te lucis ante terminum" para as Completas (Liturgia das Horas), cantado pelo coro dos monges cistercientes da Abadia de Stift Heiligencreuz (Áustria):



Te lucis ante terminum,
rerum Creator, poscimus,
ut solita clementia,
sis praesul ad custodiam.

Te corda nostra somnient,
te per soporem sentiant
tuamque semper gloriam
vicina luce concinant.

Vitam salubrem tribue
nostrum calorem refice
taetram noctis caliginem
tua collustret claritas.

Praesta, Pater omnipotens
per Iesum Christum Dominum
qui tecum in perpetuum
regnat cum Sancto Spirito.

Amen.


PS: Esta versão do Te lucis ante terminum é a que é cantada na Quaresma. Ver todas as versões aqui.

Te Deum

O hino "Te Deum", aqui cantado pelos monges beneditinos da Abadia de São Maurício e São Mauro (Clairvaux, Luxemburgo), é atribuído tradicionalmente a Santo Ambrósio e a Santo Agostinho. Teria sido composto por volta do ano 387.




Te Deum laudamus:
te Dominum confitemur.
Te aeternum Patrem
omnis terra veneratur.
Tibi omnes Angeli;
tibi caeli et universae Potestates;
Tibi Cherubim et Seraphim
incessabili voce proclamant:
Sanctus, Sanctus, Sanctus,
Dominus Deus Sabaoth.
Pleni sunt caeli et terra
maiestatis gloriae tuae.
Te gloriosus Apostolorum chorus,
Te Prophetarum laudabilis numerus,
Te Martyrum candidatus laudat exercitus.
Te per orbem terrarum
sancta confitetur Ecclesia,
Patrem immensae maiestatis:
Venerandum tuum verum et unicum Filium;
Sanctum quoque Paraclitum Spiritum.
Tu Rex gloriae, Christe.
Tu Patris sempiternus es Filius.
Tu ad liberandum suscepturus hominem,
non horruisti Virginis uterum.
Tu, devicto mortis aculeo,
aperuisti credentibus regna caelorum.
Tu ad dexteram Dei sedes, in gloria Patris.
Iudex crederis esse venturus.
Te ergo quaesumus, tuis famulis subveni:
quos pretioso sanguine redemisti.
Aeterna fac cum sanctis tuis in gloria numerari.
Salvum fac populum tuum,
Domine, et benedic hereditati tuae.
Et rege eos, et extolle illos usque in aeternum.
Per singulos dies benedicimus te;
Et laudamus Nomen tuum in saeculum, et in saeculum saeculi.
Dignare, Domine, die isto sine peccato nos custodire.
Miserere nostri Domine, miserere nostri.
Fiat misericordia tua,
Domine, super nos, quemadmodum speravimus in te.
In te, Domine, speravi:
non confundar in aeternum.


PS: Veja-se o detalhe realista da gravação, com o som de um banco de madeira a cair no chão, por volta da palavra "Apostolorum".

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O anúncio «New Age / Next Age» perfeito!

«Les enseignements relatifs à l’Onction et à la transmission de cette “médecine” Christique Solaire et quantique, seront particulièrement centrés en 2011 sur l’axe énergétique sexualité-spiritualité. Notre merveilleuse énergie sexuelle réhabilitée, vitale et pulsionnelle, est la Source de notre pouvoir créateur, de notre magie en ce plan et de notre capacité d'Accomplir notre Humanité en cette Humanité.»

É espantoso este anúncio! Está aqui quase tudo o que cabe na categoria da «new age», ou melhor dizendo, da «next age»: os milenarismos (a referência ao ano 2012), a magia, a pseudo-ciência (a refência à mecânica quântica), o cristianismo esotérico, o "sagrado feminino", a religião solar, o gnosticismo da "unidade", o chamanismo, o pseudo-hinduísmo (a referência ao "Yôga") e, claro, as patranhas das curas holísticas. Entrando no site, surgem mais coisas lindas, como referências alquímicas (Paracelso) e, claro, o Padre Teilhard de Chardin. Todo um programa, e óleozinhos baratinhos, suponho! Que a unçãozinha da treta, se fosse muito cara, ninguém a comprava, a não ser talvez os abastados clientes do Deepak Chopra!

Mas sobretudo, la pièce de résistance, é a informação de que o ciclo de conferências referido no anúncio vai ter lugar, em Agosto deste ano, em... Rennes-le-Château, mais precisamente em Bugarach!

PS: Ora bolas, estando tão perto de Bugarach, não poderia este anúncio ter metido ainda uma referência aos OVNIs, que toda a gente sabe que aterram todas as noites no topo dessa montanha, para permitir aos iniciados a absorção do conhecimento milenar das avançadas raças intergaláticas?

Indigência estudantil


Que Portugal não é competitivo, já se sabe. Que está em marcha uma fuga para o estrangeiro das pessoas válidas deste país, também não é novidade. Que o ensino em Portugal anda pela hora da morte também é sabido. Que, todos os anos, lotes de alunos saem do Secundário praticamente analfabetos e entram dessa forma no Ensino Superior, também é sabido. E que, no final de um curso superior terminado dificilmente e com todo o conforto financeiro e bons hábitos consumistas suportados pelos paizinhos dos estudantes, os espera o desemprego e a virtualidade de uma carreira profissional inexistente, também corresponde à nossa triste realidade.

Tudo isto já é trágico. Mas o mau pode sempre ser superado pelo péssimo. Ontem, aqui no Parque das Nações, assisti a uma cena deprimente: ao longo da Alameda dos Oceanos, junto aos vulcões de água, estavam umas largas dezenas de alunos universitários enfiados dentro de água, com penicos na cabeça. A controlar a exibição edificante estavam também umas dezenas de "veteranos", essa espécie particularmente refinada de aluno burro repetente e calaceiro que não pretende fazer nada da sua vida já fútil, e que se diverte boçalmente em montar "praxes" degradantes, que normalmente envolvem fezes, urina e depravação sexual.

Ora não pode ser coincidência que, hoje de manhã, no dia a seguir a este triste espectáculo, enquanto ia a caminho do escritório, tenha ouvido na rádio a notícia do "show" lésbico na Queima das Fitas, um "evento" organizado por estudantes (se é que se pode usar esse termo para pessoas meramente inscritas num Curso Superior) de Engenharia Mecânica do ISEP. A notícia deste triste evento pode ser lida, por exemplo, aqui. Alguns presentes testemunharam que este evento degradante é uma "tradição" de alguns destes ditos "estudantes", o que confere um tom ainda mais deprimente a tudo isto.

O ISEP é uma instituição académica de prestígio e história. Em qualquer sociedade civilizada, os organizadores e participantes deste evento eram sumariamente expulsos da Universidade. O evento é uma vergonha, não só para os ditos, mas sobretudo para aquele instituto de ensino superior.

Portugal é um país pobre e não competitivo há vários séculos. Mas era tido, e justamente, como um país de gente bem educada e bem formada. Até isso estamos a perder. A indigência estudantil é um espectáculo tristemente célebre e actual em Portugal. Basta ver como se comportam os estudantes de universidades como Oxford, Cambridge, MIT ou outras universidades conceituadas em países realmente civilizados para vermos o estado em que Portugal caiu.

Mas, do ponto de vista do aluno que participa ou promove estas fantochadas, o drama é sempre mais vivo: aqui temos jovens adultos, com mentalidade ainda infantil, sem preparação, sem cultura, sem futuro profissional, a gastar o dinheiro dos pais e do Estado em trajes académicos caros, em bebedeiras, em penicos e em "strippers".

PS: Um detalhe sinistro, mas também revelador: soube da notícia do "show" lésbico através de uma rádio indigente e imbecil que dá pelo nome de SWtmn, algo que parece ser patrocinado, ou detido, pela operadora TMN. Ora não só os jovens ignorantes locutores estavam excitados com o "show" lésbico e com esssa nobre tradição académica, como um deles rematou a notícia da seguinte forma: "curiosamente ninguém protestou contra a presença das «strippers», a não ser pessoas de batina!». Sinal preocupante, mas ilustrativo, de que o anticlericalismo primário pode facilmente andar de mãos dadas com a indigência, com a boçalidade e com a ignorância.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Castelnuovo-Tedesco - Concerto N.º 1 para Guitarra e Orquestra



Este é o segundo andamento do Concerto N.º 1 para Guitarra e Orquestra, Op. 99 em Ré Maior, do compositor florentino Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968), composto em 1939. A interpretação é da guitarrista Irina Kulikova.
Este Concerto é magnífico e dispensa comentários.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Heitor Villa-Lobos - Prelúdio n.º 1



Acabo de descobrir esta rara interpretação do Prelúdio N.º 1 de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), e também esta guitarrista: a francesa Ida Presti (1924-1967). Uma interpretação espantosa (apesar da má qualidade da gravação), que revela a técnica e a intuição musical de uma guitarrista extraordinária. Este prelúdio faz parte de uma série de cinco prelúdios escritos pelo compositor carioca, em 1940, e dedicados à sua segunda mulher, Mindinha (Arminda Neves d'Almeida).

segunda-feira, 4 de abril de 2011

"Nós somos Igreja" - relato de um confronto

«There can be no combination on the basis of truth without an organ of truth» - Beato John Henry Cardeal Newman (1801-1890)

No passado Sábado, dia 2 de Abril, teve lugar no Convento de São Domingos um debate intitulado O Concílio Vaticano II: onde está?, organizado pelo movimento "Nós Somos Igreja". A minha primeira reacção à notícia deste debate, via Agência Ecclesia, foi de espanto e de indignação. Estava, e ainda estou, indignado com o facto de uma agência noticiosa católica dar cobertura a um evento herético.

A palavra "herege" ainda assusta muita gente. E há boas e más razões para tal. As boas razões são evidentes: as heresias ferem a unidade eclesial e colocam os seus defensores numa indesejável situação espiritual. As más razões são menos evidentes, e prendem-se com o desconhecimento do significado do adjectivo "herege" ou do substantivo "heresia". Ambas as palavras têm uma origem etimológica no conceito de "escolha", e assim designam aqueles cristãos que optam por doutrinas diversas da que nos une. Quando alguém que pertence à Igreja de Cristo opta por uma doutrina diferente da doutrina cristã, é essa opção herética que é a causa da exclusão dessa pessoa da unidade eclesial. É quem diverge da doutrina que se exclui. Então, erram todos os que julgam que é a Igreja que exclui os hereges. Os hereges é que se auto-excluem da unidade eclesial. E enquanto que o acto de heresia, hoje em dia, é bem visto (parece "moderno"), paradoxalmente fica mal visto quem chama as coisas pelo seu nome. E raramente se censura o cristão que, persistindo na heresia, pretende arrastar mais cristãos com ele. E raramente se avaliam com seriedade os enormes riscos para a unidade eclesial de toda e qualquer iniciativa herética. Quando as ideias heréticas almejam, frequentemente, ter voz activa na Igreja, e mobilizam, também frequentemente, os poderes mediáticos para promover tal fim, o cristão tem o direito e o dever de levantar a sua voz. O Vaticano II, pelo destaque que dá ao papel dos leigos, legitima-nos a levantar a voz em defesa da unidade eclesial e contra aqueles que a pretendem ferir.

Contra uma errada dicotomia, que pretende o confronto entre o Magistério e o dito "Povo de Deus", o comum dos fiéis, que faz parte do Povo de Deus (sim, também fazemos parte!), tem o direito de levantar a sua voz e de dizer que, por acaso, até está com o Magistério da Igreja, que está com o Santo Padre e com os Bispos a ele unidos, e que lhes quer bem. Não por eles serem excelentes pessoas (que muitas vezes são), mas porque a eles corresponde, por mandato divino, a difícil e nobre missão de preservar, transmitir e ensinar a doutrina que nos foi legada por Jesus Cristo, Senhor Nosso.

Considero que seria faltar à caridade cristã ficar-me apenas pelo comentário blogosférico, ou ficar-me pelo "e-mail" que escrevi à Agência Ecclesia, a protestar pela divulgação do dito evento promovido pelo movimento herético "Nós Somos Igreja". Qualquer cristão, em podendo, não foge a dar a cara pelas suas convicções. E foi por isso que me dirigi, no passado Sábado, à casa dos Dominicanos em Lisboa, junto à Avenida Lusíada, para escutar o dito debate, cujo tema era o Concílio Vaticano II.

Entrei na sala do debate com genuíno espírito de escuta. Escutei atentamente, com respeito, e com o coração aberto, todos os oradores do painel. Apesar da seriedade do tema, e das minhas discordâncias de fundo, não deixei de sorrir quando surgiram legítimas razões para tal: quando os participantes do debate disseram coisas com as quais concordava, acenei com a cabeça e manifestei discretamente a minha concordância pontual. Nunca deixei de os ver como meus irmãos em Cristo, como são todos os baptizados. E que não haja a menor dúvida de que a minha atitude, a minha presença, as minhas críticas, só fazem sentido se eu os considerar como tal. Alguém que não é cristão não poderia ser chamado de herege, logo, se uso o termo herege para adjectivar os apoiantes do movimento "Nós Somos Igreja" isso implica, forçosamente, que eu os veja como meus irmãos. Para além disso, o cristão, quando critica, quer corrigir o que está errado. E essa atitude é sempre uma atitude de caridade, e que deve ser caritativa, quer na forma quer no conteúdo. Ora, o acto de tentar corrigir uma heresia é sempre caritativo no conteúdo, mas deve também ser na forma, e nem sempre o é. Precisamente para eu tentar escapar a minha tendência para a escrita agressiva, e para contrariar a minha tendência para a soberba, optei por estar presente no debate, por estabelecer o contacto pessoal, por ver e debater com os meus irmãos olhos nos olhos.

Ouvi muitas coisas de que não gostei, sobretudo porque eram coisas que traíam os ensinamentos de Cristo e feriam a Igreja e a unidade eclesial. Mas, em verdade, também ouvi algumas coisas de que gostei. Pelo que a minha impressão geral, depois de conhecer os membros e apoiantes deste movimento, é a de que parecem ser pessoas empenhadas, que procuram o bem e a justiça, e que só por isso, merecem pelo menos a nossa consideração e a nossa fraternidade. No entanto, por detrás das melhores intenções, estão medidas inaceitáveis, resumidas na já bem conhecida Petição do Povo de Deus. Tais medidas atacam, uma a uma, matéria doutrinal e moral há muito definida pelo Magistério (ver, por exemplo [1], [2], [3] e [4]). Então, a mera proposta dessas medidas tem que ferir a unidade eclesial, no sentido em que um cristão que propõe medidas que visam inverter decisões definitivas do Magistério é sempre um cristão que não aceita o Magistério enquanto tal. E aqui reside o cerne da heresia: a rejeição do Magistério, a rejeição do ministério episcopal de ensinar doutrina e costumes, ministério esse que cabe, por mandamento divino, ao Papa e aos Bispos a ele unidos.

Tentarei, de memória, comentar alguns aspectos das várias intervenções do painel de quatro oradores que compuseram a segunda parte do evento (apenas assisti a esta segunda parte). Em primeiro lugar, perturbou-me que o debate fosse unilateral: todos os intervenientes estavam em sintonia, quer entre si, quer com o moderador, o jornalista Manuel Vilas Boas, que para lá de meramente moderar, manifestava frequentemente a sua opinião, constituindo como que um quinto orador, mesmo que ocasional. Frei Bento Domingues, teólogo que já critiquei repetidas vezes neste blogue, estava presente mas não se manifestou oralmente, por não fazer parte do painel. Era, no entanto, notória e sabida a sua concordância com as opiniões emitidas durante todo o debate.

Antes de abrir a segunda parte do debate, por volta das 17 horas, o moderador pediu a Frei Mateus Peres, O.P., que fizesse uma intervenção. Frei Mateus Peres foi sintético: usou a expressão forte de "fracasso da aplicação do Vaticano II" para caracterizar a situação actual da Igreja Católica. Achei extremamente exagerado e injusto, dado que, quer Paulo VI, quer João Paulo II, dedicaram a maior parte dos seus papados à aplicação das decisões do Vaticano II. Seria precipitado dizer que tudo o que saiu do Vaticano II foi aplicado. Por exemplo, e só para dar um exemplo, a recomendação de dar o lugar primordial ao canto gregoriano, nas celebrações litúrgicas, é algo que ainda hoje está apenas a dar os primeiros passos. Mas entendi a mensagem de Frei Peres: a teologia dita "progressista" ou "liberal" quis sempre usar o Vaticano II para criar uma ruptura com a Tradição da Igreja com o objectivo de agradar ao Mundo. E, não satisfeita por não ter conseguido fazer embarcar os Pontífices nessa trajectória, essa teologia persiste em afirmar que o Vaticano II não foi aplicado. No entanto, existe ainda outra injustiça: é que os teólogos progressistas ou liberais tiveram a sua oportunidade para mudar a Igreja no sentido que desejavam, e nesse aspecto não fizeram cerimónias: exerceram várias décadas de influência junto dos seminários, das universidades católicas, das paróquias, dos institutos culturais da Igreja, dos "media" da Igreja, e finalmente das ordens religiosas, tendo mesmo entrado em algumas ordens de forma tão profunda que abalaram os seus alicerces e modificaram substancialmente os seus carismas. É caso para dizer que o grande São Domingos, se estivesse vivo, nunca teria permitido este debate de Sábado na sua casa.

O resultado está à vista há vários anos: o último quarto do século XX ficará retratado, na história da Igreja Católica, como um período triste pela desertificação dos seminários, das paróquias, pela erosão da fé, pela banalização da liturgia, pela perda de cultura católica, pela redução do número de baptismos, de matrimónios, pela secularização generalizada da Igreja. Têm, a meu ver, razão aqueles que ligam causalmente esta secularização interna que marcou o último quarto do século XX ao fenómeno imoral dos abusos sexuais no seio da Igreja Católica, que marcou o mesmo período.

Seria, então, caso para perguntar a Frei Peres: não tiveram já tempo demais, os ditos "progressistas", os ditos "liberais", para fazerem as suas experiências? Não estão os frutos à vista? É preciso prosseguir com a sangria, e deixar a Igreja ainda mais moribunda? Claro que não. E Paulo VI, traído por inúmeros teólogos e sacerdotes, entendeu isso. E João Paulo II também. E por isso, ambos os pontífices seguiram o rumo correcto: aplicaram o Vaticano II como o Concílio que foi: um Concílio de continuidade com a tradição da Igreja. Um Concílio de abertura ao Mundo, mas sem deixar que a Igreja se tornasse no Mundo, uma abertura sem perda de continuidade, sem perda de carisma, sem perda de identidade. O legado de Paulo VI e de João Paulo II é demasiado valioso para ser trivializado. Estes Papas conduziram a barca de Pedro em direcção ao século XXI, e deixaram a Bento XVI uma Igreja que reencontrou a sua identidade, depois dos "abanões" dos anos 60 e 70. Eles salvaram a Igreja de um descarrilamento desastroso, e fizeram-no com toda a coerência: aplicando o Vaticano II. A verdade histórica vai, então, contra a afirmação peremptória de Frei Peres.

O moderador passou, depois, a palavra à pintora Emília Nadal. Confesso que foi a oradora por quem senti menos empatia e simpatia, e explico brevemente as minhas razões. Em primeiro lugar, a oradora usou boa parte do seu tempo para auto-elogiar a sua alegada (que não tenho bases para negar) influência junto do Papa João XXIII, nomeadamente em matéria de recomendação, junto do Papa, de figuras do clero nacional. Não lhe ficou bem. A certa altura, a oradora vincou o legado do Vaticano II em termos do destaque dado à Palavra de Deus. Achei curiosa esta menção, dado que boa parte das propostas do movimento "Nós Somos Igreja", conforme descritas no texto intitulado Petição do Povo de Deus, são manifestamente contraditórias com o Novo Testamento e com os ensinamentos de Jesus:
  • A escolha, por Jesus, de doze apóstolos do sexo masculino, em contradição com o pedido do movimento para o estabelecimento da ordenação sacerdotal de mulheres; esta tradição, que permeia todos os Quatro Evangelhos nas inúmeras vezes em que se dá destaque ao grupo dos Doze, volta a ser reforçada nos Actos dos Apóstolos, quando o grupo, reduzido a onze (devido à traição de Judas Iscariotes), decide escolher um novo apóstolo para ocupar o lugar de Judas; logo no primeiro capítulo dos Actos dos Apóstolos, vemos Pedro a tomar a palavra (exercendo o seu papel de cabeça do colégio apostólico) e a estipular que se escolha um substituto de entre os varões que testemunharam a ressurreição de Cristo (a palavra "viris" surge clara no versículo 21 da Vulgata): de entre as opções de José Barsabas, o "Justo", e Matias é escolhido este último;
  • O ensinamento claro de Jesus, que classifica a situação dos recasados como sendo uma situação de adultério, em contradição com o pedido do movimento de que os recasados possam aceder à Eucaristia; sobre isto, o movimento está totalmente enganado: a Igreja não exclui os recasados, como também não exclui os pecadores: uma coisa é excluir o pecado, outra é excluir os pecadores; não são só os recasados que não podem aceder à comunhão, mas sim todos os fiéis que estejam em situação de pecado mortal (cfr. 1ª Carta de São Paulo aos Coríntios, 11, vs. 27: "Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor.");
  • O ensinamento claro de Jesus acerca do matrimónio como união de carne entre um homem e uma mulher, em contradição com o pedido do movimento para uma "tolerância" em matéria de sexo extra-marital (seja ele heterossexual ou homossexual).

Depois, no discurso de Emília Nadal, seguiu-se um trecho simplesmente lastimável, no qual a oradora feriu gratuitamente as gerações mais novas, considerando-as "superficiais" e "desinteressadas". Haverá, certamente, alguma verdade nas suas palavras: em todas as gerações, há sempre pessoas superficiais e desinteressadas. Mas é fatal, e a história repete-se, que uma geração ceda à tentação de menosprezar as gerações mais novas e de fazer generalizações, quer banais, quer injustas. O tom subiu e o nível desceu: a oradora troçou da mole de jovens que têm frequentado as Jornadas Mundiais da Juventude, "sempre atrás do Papa". Eu, que participei nas JMJ's de Paris (1997) e de Roma (2000), senti-me esbofeteado verbalmente pela oradora. Esses eventos marcaram a minha vida. Fiz amigos incríveis, e tive experiências marcantes de fé. Que mal fizemos nós? Ir atrás do Papa... A oradora ainda aludiu à incoerência dos jovens que assistem a missas papais e depois usam preservativos. Sim, claro. Tem razão. Mas deveria ser tão farisaica, a oradora? Que outra coisa será o pecado senão a manifestação da contradição entre um ideal de vida e a prática do dia-a-dia? Quem, para além de Jesus Cristo e Nossa Senhora, está livre do Pecado Original? Emília Nadal atirou a primeira pedra: os jovens são contraditórios e pecam: agem contra a fé que dizem professar, mesmo quando correm atrás dos Papas. E não é essa a condição de pecador? Estará já a oradora num estádio espiritual de ausência de pecado?

A terrível ironia da situação apresentava-se aos meus olhos: enquanto Emília Nadal insultava as novas gerações, eu constatava as idades dos participantes do evento. Ao que tudo indica, naquela sala, eu seria o mais velho dos contestatários do "Nós Somos Igreja", sem vislumbrar apoiantes do movimento mais novos que eu. O pequeno grupo de cristãos que me acompanhou, também eles em desacordo com o movimento, era composto por pessoas ligeiramente mais novas que eu. Do lado do "Nós Somos Igreja", talvez o Pedro Freitas, coordenador do IMWAC, tenha a minha idade, cerca de 35 anos. Todos os restantes estavam na geração acima, ou duas gerações acima da minha. Achei triste. Ninguém, aparentemente, se deu conta da ironia: o movimento "Nós Somos Igreja", pelo menos pela amostra daquela sala, não parece atrair jovens. E porque será? Bom, eu diria que não é fácil atrair juventude quando se usam palavras tão duras contra essa juventude. Os jovens que seguem entusiasticamente o Papa, seja ele qual for, e que tiram tempo das suas férias para participar em eventos como as Jornadas Mundiais da Juventude, pelos vistos, não parecem ter grande atracção por um movimento constituído por pessoas bastante mais velhas, que não os conseguem convencer da "modernidade" de desobedecer aos Papas. E com razão: onde está a atractividade e a novidade disso? A opinião pública, a cultura contemporânea, e boa parte dos "media", dão-nos amplos exemplos de rejeição do Papado, de desprezo e de sátira perante a mensagem da Igreja Católica. Qual o atractivo que pode ter um movimento como o "Nós Somos Igreja" para um jovem cristão de hoje? Convidam a algo como: "Vem connosco, sê diferente e contesta o Magistério!", como se essa proposta fosse nova. Que futuro propõem aos jovens de hoje? Como podem querer ser credíveis e atraentes para as novas gerações de cristãos quando estruturam a identidade do seu movimento na crítica ao Magistério?

Permitam-me abrir um parêntesis mais pessoal...

Não quero constituir um paradigma a partir da minha experiência pessoal, mas eu próprio já fui, em tempos, um entusiasta defensor do "Nós Somos Igreja". A contestação à autoridade estabelecida parece ser uma característica frequente dos tempos de juventude, e também eu passei por isso. Recordo-me de sair de uma missa dominical na paróquia de Santa Maria de Belém indignado pelo facto de o prior ter criticado, durante a homilia, o movimento "Nós Somos Igreja". Eu teria, no máximo, uns vinte anos. Já estava, na altura, em crise de fé e em rota de colisão com o Magistério. Nesse tempo, eu almoçava todos os Domingos em casa dos meus avós e fazia da leitura da coluna de Frei Bento Domingues no Público o meu ritual pós-almoço. Como eu admirava o Frei Bento! Por variadíssimas razões, com o passar do tempo, persisti na leitura e no estudo, e ganhei um grande fascínio pelo cristianismo, pela sua história, pela sua doutrina, pela sua mensagem, pelas suas figuras de proa. Curiosamente, e ao contrário da tese de Emília Nadal, foi porque eu não me resignei a uma fé superficial de juventude que encetei um caminho de aprofundamento da fé e da cultura cristã. E, também curiosamente, quinze anos depois, motivado pela necessidade de coerência e pelo amor à verdade, acabei como adversário das ideias do "Nós Somos Igreja" e grande crítico das ideias de Frei Bento Domingues. E, ironia das ironias, o prior de Santa Maria de Belém, que ainda é o mesmo, e que eu nos meus tempos ingénuos de juventude critiquei pela sua oposição ao "Nós Somos Igreja", é hoje em dia um dos sacerdotes que eu mais admiro: um servidor incansável de Jesus Cristo e da Igreja Católica, um homem de inegável cultura e intelectualidade, e um protector e defensor da dignidade e da beleza da liturgia romana.

Penso que para alguns cristãos da minha geração, o "Nós Somos Igreja" representou como que uma espécie de "Maio de 68" do nosso percurso cristão. Eu passei por essa fase do percurso e ultrapassei-a. E para mim, a experiência foi positiva no sentido em que, por vezes, é mais expedito cometermos um erro para o reconhecermos como tal. Há sempre riscos envolvidos nesse processo de aprendizagem pelo erro, mas a verdade é que as lições que se aprendem são marcantes.

(fim do parêntesis pessoal)

À pintora Emília Nadal, seguiu-se o orador Joaquim Franco, jornalista, um orador simpático e cativante. Confesso que não me é tão fácil comentar o discurso de Joaquim Franco, pois pareceu-me menos objectivo e menos assertivo. Tentarei, então, cingir-me ao ponto do qual mais discordei no seu discurso. A certa altura, Joaquim Franco alude ao Encontro de Bento XVI com o mundo da Cultura, a 12 de Maio de 2010. O orador mostrou-se perplexo com a (alegada) subserviência dos representantes das várias religiões que estiveram presentes no evento, e que o dito evento transmitia a ideia (errada, segundo Joaquim Franco) de que a Igreja Católica representava a realidade portuguesa. Espanto! Duplo espanto! Por um lado, como é que aceitar um convite poderá representar subserviência? Se os representantes das restantes religiões com presença em Portugal decidem aceitar um convite feito pela Igreja Católica para se encontrarem no CCB com Bento XVI, estão com esse acto a manifestar subserviência? Por outro lado, e aqui reside o maior espanto, que quer o "Nós Somos Igreja" com este protesto? Quer aumentar o volume da voz das restantes religiões, em detrimento de reduzir o volume da voz do catolicismo, em nome de um "religiosamente correcto"? Ao fim e ao cabo, porque razão quer este movimento reduzir a importância da Igreja Católica no nosso país? A meu ver, esta atitude é suicida e incoerente. O católico quer anunciar a Boa Nova, quer persuadir todas as pessoas da verdade da fé católica e da sua necessidade para a salvação das almas, cumprindo assim o mandamento divino:

«E disse-lhes: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado será salvo; mas, quem não acreditar será condenado.» (São Marcos 16, 15-16).

Vê-se que este movimento promove um diálogo entre religiões completamente distorcido, que parece assentar no relativismo religioso, na ideia de que a conversão dos povos ao catolicismo se tornou irrelevante.

Ao Joaquim Franco, sucedeu a teóloga Teresa Toldy. No seu discurso, impressionou-me fortemente o seguinte raciocínio proposto pela oradora: enquanto que, na Igreja Católica, os homens têm acesso aos sete sacramentos [Baptismo, Confirmação, Eucaristia, Reconciliação, Ordenação, Matrimónio e Unção dos Enfermos], as mulheres só têm acesso a seis deles (não têm acesso ao da Ordenação). Esta observação "matemática" da oradora não faz qualquer sentido, e por várias razões:
  1. Essa "matemática" enganadora do "sacramento a menos" não coloca as mulheres em situação de fragilidade salvífica, pois é o Baptismo que salva, e depois dele, é a Reconciliação que nos limpa da mancha do pecado, e nos permite alcançar a misericórdia de Deus e a salvação da nossa alma; ora, quer o Baptismo quer a Reconciliação estão ao alcance de todos;
  2. Esse "acesso" aos sacramentos foi apresentado pela oradora como sugerindo uma espécie de direito, como se os sacramentos, em vez de dom gratuito da graça de Deus, fossem um direito que nós temos; nós não temos direito aos sacramentos, e por isso mesmo devemos merecê-los; por isso mesmo, há pré-requisitos para o acesso a todos os sacramentos: eles não são algo que é nosso de direito e posse, mas sim graças às quais poderemos aceder, se reunirmos as condições para tal, e apenas porque Deus assim o estipulou;
  3. Esse "acesso" aos sacramentos foi também apresentado pela oradora como uma espécie de poder, como se o sacramento da Ordenação deixasse de ser visto como serviço à Igreja (que é) e passasse a ser visto como um exercício de poder (que não é);
  4. A opção por uma determinada vocação exclui, automaticamente, o acesso a certos sacramentos: por exemplo, a pessoa que segue a vocação matrimonial e recebe o sacramento do Matrimónio deixa, ipso facto, de ter acesso ao sacramento da Ordenação, e vice-versa; logo, uma pessoa casada apenas tem acesso a cinco sacramentos (não pode repetir o Baptismo), pois quando se casa deixa de ter acesso ao sacramento da Ordenação, e vice-versa.

A seguir à Teresa Toldy, falou o Pedro Freitas, coordenador do IMWAC. Parece-me impossível antipatizar com o Pedro Freitas depois de se estar com ele frente a frente e de o ouvir a falar. Falou de uma forma até bastante humilde e cordata, atendendo ao conteúdo explosivo e nada humilde do seu discurso, centrado necessariamente nas reclamações prepotentes da Petição do Povo de Deus.

Concluídos os discursos dos intervenientes do painel, seguiu-se um momento de perguntas e respostas. Incrivelmente, nenhuma das perguntas ou dos comentários que surgiram da plateia continha a mínima crítica às ideias apresentadas pelos oradores. Todas as perguntas eram laudatórias, quer ao movimento "Nós Somos Igreja", quer às ideias transmitidas pelos oradores e pelo moderador. Algumas perguntas constituíam ataques à Igreja ou a órgãos da Igreja. Uma pessoa criticou duramente o programa Ecclesia, que passa na RTP2, em termos que não recordo exactamente, mas que também não é salutar recordar.

Esperei pacientemente pela minha oportunidade de colocar uma questão. Infelizmente, o evento terminava às 19 horas, e após as perguntas e respostas, ainda deveria falar a oradora Alfreda Ferreira da Fonseca, encarregada de encerrar o evento. O tempo estava, então, a terminar... A certa altura, foi-me dada a palavra, e pediram-me para ser breve, dada a hora avançada. Começando por dizer ao painel que eu iria fazer uma pergunta "de contraditório" (para vincar que seria a primeira e talvez a única da sessão), concentrei tudo nesta pergunta:

"Como comentam os oradores do painel a contradição que eu vejo entre tudo o que disseram aqui esta tarde e a passagem da Constituição Dogmática «Lumen Gentium», do Vaticano II, a respeito do ministério episcopal de ensinar?"

Feita a pergunta, li a seguinte passagem do Capítulo III da Lumen Gentium, secção "O ministério episcopal de ensinar":

«Ensinando em comunhão com o Romano Pontífice, devem por todos ser venerados como testemunhas da verdade divina e católica. E os fiéis devem conformar-se ao parecer que o seu Bispo emite em nome de Cristo sobre matéria de fé ou costumes, aderindo a ele com religioso acatamento. Esta religiosa submissão da vontade e do entendimento é por especial razão devida ao magistério autêntico do Romano Pontífice, mesmo quando não fala ex cathedra; de maneira que o seu supremo magistério seja reverentemente reconhecido, se preste sincera adesão aos ensinamentos que dele emanam, segundo o seu sentir e vontade; estes manifestam-se sobretudo quer pela índole dos documentos, quer pelas frequentes repetições da mesma doutrina, quer pelo modo de falar.»

Fiquei com a impressão de que a pergunta caiu como uma bomba. Assim que terminei, o moderador perguntou-me qual era, afinal, a minha pergunta. Ora eu já a tinha feito! Tinha precisamente começado por pedir ao painel para me explicar a contradição entre este trecho da Lumen Gentium, que ensina o "religioso acatamento" e a "religiosa submissão da vontade e do entendimento" ao Magistério, e as propostas feitas por todos os oradores naquela sessão da tarde, consubstanciadas na "Petição do Povo de Deus", que pede a revisão de matérias definidas como finais e irreformáveis pelo Magistério da Igreja Católica. Por razões de concisão, não repeti os pontos defendidos pelo movimento, não só porque já haviam sido ditos, mas porque todos os tínhamos bem presentes. Limitei-me a pedir um esclarecimento acerca da contradição entre este texto do Vaticano II e o que naquela tarde fora dito por todos os oradores de um debate dedicado ao tema do Vaticano II.

O painel mostrou-se perplexo: alguns, incluindo o moderador (que, repito, agia por vezes como um quinto orador), perguntaram-me onde estava a contradição. Eu nem queria acreditar que iriam evitar, desta forma, responder a minha pergunta! Antevendo a minha crítica, o moderador disse (e acredito que com honestidade e sinceridade) que não queria prejudicar-me pelo avançado da hora, mas que realmente havia pouco tempo. O moderador passou a "batata quente" para a teóloga Teresa Toldy, que foi assim incumbida por ele de me dar uma resposta.

Teresa Toldy respondeu-me com uma pergunta (cito-a de memória, não anotei as suas palavras exactas): "Leu a primeira parte da «Lumen Gentium»? É que se o fizer, entenderá o contexto". Eu nem queria acreditar: uma teóloga a lançar-me um argumento de autoridade para evitar responder! Eu insisti: "mas não me esclareceu acerca da contradição, se ela não existe, explique-me porquê!". Aí, Teresa Toldy deu uma resposta ainda mais enigmática: "Se calhar, há uma contradição na própria «Lumen Gentium»". E a questão morreu assim, porque o evento tinha mesmo que terminar, e foi dada a palavra à Alfreda para o encerrar. No final do evento, tive ainda uma conversa em privado com a Teresa Toldy, cujo conteúdo não vou revelar, por ser de carácter privado.

Tenho um palpite acerca da resposta que a Teresa Toldy não me chegou a dar. Penso que a teóloga não se referia ao Capítulo I da «Lumen Gentium», pois aí voltamos a encontrar o reforço do ministério episcopal de ensinar, nomeadamente em trechos como este:

«Esta é a única Igreja de Cristo, que no Credo confessamos ser una, santa, católica e apostólica (12); depois da ressurreição, o nosso Salvador entregou-a a Pedro para que a apascentasse (Jo. 21,17), confiando também a ele e aos demais Apóstolos a sua difusão e governo (cfr. Mt. 28,18 ss.), e erigindo-a para sempre em «coluna e fundamento da verdade» (I Tim. 3,5). Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, é na Igreja católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele (13), que se encontra, embora, fora da sua comunidade, se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica.»

Penso ser provável supor que Teresa Toldy pretendia apontar uma suposta contradição entre o conteúdo do Capítulo II ("O Povo de Deus") em matéria de infalibilidade e o conteúdo do Capítulo III ("A Constituição Hierárquica da Igreja e em especial o Episcopado") acerca da mesma matéria. No capítulo II encontramos a crucial distinção entre "sacerdócio comum" (a todos os fiéis) e "sacerdócio ministerial", distinção que o "Nós Somos Igreja" teima em obliterar. Pouco depois desta distinção, encontramos a magnífica descrição da infalibilidade do Povo de Deus, notável desenvolvimento e complemento da teologia da infalibilidade do Vaticano I, na secção "O sentido da fé e dos carismas no povo cristão":

«12. O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, fruto dos lábios que confessam o Seu nome (cfr. Hebr. 13,15). A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cfr. Jo. 2, 20 e 27), não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, «desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis» (22), manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes. Com este sentido da fé, que se desperta e sustenta pela acção do Espírito de verdade, o Povo de Deus, sob a direcção do sagrado magistério que fielmente acata, já não recebe simples palavra de homens mas a verdadeira palavra de Deus (cfr. 1 Tess. 2,13), adere indefectivelmente à fé uma vez confiada aos santos (cfr. Jud. 3), penetra-a mais profundamente com juízo acertado e aplica-a mais totalmente na vida.»

Ora, não só encontramos mais uma vez, como já sucedera nos capítulos I e III, a reafirmação do ministério episcopal de ensinar ("... o Povo de Deus, sob a direcção do sagrado magistério que fielmente acata..."), como constatamos que não há qualquer contradição entre a infalibilidade do Povo de Deus e a infalibilidade do Magistério. É que a infalibilidade do Povo de Deus está definida do seguinte modo: que o Povo de Deus "não pode enganar-se na fé (...) quando este, «desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis», manifesta consenso universal em matéria de fé de costumes". Não está escrito, neste trecho, que não há, no Povo de Deus, pessoas em situação de divergência pontual ou sistemática: haverá sempre pessoas fora de sintonia com este consenso universal, nem que seja por ignorância. O que está dito é que, quando há consenso universal em matéria de fé e de costumes, todos os fiéis envolvidos nesse consenso, do mero leigo ao Sumo Pontífice, são infalíveis. Como bem explica o Padre James O'Connor:

«It is clear from the teaching of Vatican II that the gift of infallibility resides in the sensus fidelium. The body of the faithful cannot err in matters of faith and morals. It must be noted, however, that this infallibility of the People of God is given to the entire body of the faithful. It is not given to the faithful in contradistinction to the infallible charism given to the Magisterium of the Pope and bishops. Indeed, the proper exercise of the infallibility of the entire People of God necessitates a "faithful submission to the sacred Magisterium" if that body of the faithful is to believe, penetrate more deeply, and apply more thoroughly the faith entrusted to the saints. If the teaching of the Pope and bishops is not included in the "universal consent about matters of faith and morals" then one does not truly have a sensus fidelium, a consensus among the faithful. Once that is clear, it should be obvious that determining the sensus fidelium is not a matter of poll taking or of sociological reports.» [5]

E assim se fecha o ciclo entre o Vaticano I e o Vaticano II em matéria de infalibilidade.

Assim se vê que as petições do "Nós Somos Igreja" caem fora deste consenso universal, pois mesmo que sejam petições da autoria de certos fiéis baptizados que fazem parte do Povo de Deus, são petições que não reúnem consenso. Nem sequer reúnem o consenso da maioria dos fiéis, e mesmo que atingissem essa proeza, ainda teriam que reunir o consenso de todos os fiéis, incluindo do Magistério, para que estivessem sob a alçada da infalibilidade do Povo de Deus. Chesterton dizia que a tradição é a democracia dos mortos, no sentido em que a tradição é mais democrática que a democracia convencional, porque deixa os mortos votarem. Assim se vê que as petições do Povo de Deus nunca reuniriam o consenso da Igreja de todos os tempos, pois é incontável o número de fiéis, qualquer que seja a sua posição na hierarquia da Igreja, que defenderam sem ambiguidades o exacto oposto das petições do "Nós Somos Igreja".

De todos os oradores, a pessoa com quem fiquei com mais empatia foi com a Alfreda Ferrreira da Fonseca, que encerrou o evento. Ela falou de forma muito viva acerca da divergência de opiniões, de que todos estavam ali numa atitude de diálogo, e que era cristã a atitude de abertura ao outro. Parece-me que ela quis, depois da minha pergunta incómoda, terminar num tom de coerência. Afinal, falou-se durante toda a tarde em diálogo e abertura a posições diferentes, e seria bizarro se, face à minha discordância verbalizada, a atitude daquelas pessoas fosse a oposta. Por isso, gostei mesmo de ouvir a Alfreda a frisar a importância do diálogo e da abertura ao outro, porque seria uma tremenda injustiça e incoerência que aqueles católicos que, como eu, se opõem às ideias do movimento "Nós Somos Igreja" não fossem ouvidos pelos membros desse movimento. Afinal de contas, nós também somos Igreja...

A Alfreda também fez uma referência ao encontro entre Jesus e Pilatos, conforme narrado em São João, no qual Pilatos teria perguntado a Jesus o que era a verdade, e que Jesus teria ficado silencioso, e com base nisso, pareceu-me que a Alfreda estaria a criticar o conceito de verdade. Vejamos o trecho em questão:

"Disse-lhe Pilatos: «Logo, Tu és rei!» Respondeu-lhe Jesus: «É como dizes: Eu sou rei! Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz.» Pilatos replicou-lhe: «Que é a verdade?» Dito isto, foi ter de novo com os judeus e disse-lhes: «Não vejo nele nenhum crime.»" - Evangelho segundo São João, 18, 37-38.

Como se vê claramente, Jesus fala da verdade como algo de real e normativo. Jesus afirma que veio para dar testemunho da verdade. Logo, como seria de esperar, nada de relativismo em Cristo. O próprio texto de São João não nos permite deduzir que Jesus não teria resposta para a pergunta de Pilatos. É claro que Jesus teria resposta, basta considerar a resposta que Jesus deu a Tomé: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir até ao Pai senão por mim.» (São João, 14, 6). Em última análise, Jesus poderia ter respondido a Pilatos, em total coerência: "A Verdade sou Eu". Do texto de João, omisso face a uma eventual resposta de Cristo, podemos deduzir, ou que Cristo não respondeu porque não quis, ou que Cristo respondeu, mas o evangelista não registou essa resposta.

Este relato só pode terminar de uma forma: com um convite a todos os membros e apoiantes do movimento "Nós Somos Igreja". Trata-se do único convite que, no fim de contas, interessa mesmo fazer: convertam-se, pelo amor a Deus e à Igreja de Cristo! Voltem à unidade eclesial, da qual nunca deveriam ter saído. É uma questão de vida eterna ou de morte eterna.

PS: Muito agradeço ao João Silveira, ao Miguel Belo, à Margarida Paccetti e à Rita Ludovice por me terem enviado as suas recordações deste debate, de forma a colmatar as lacunas da minha memória.

PPS: Se algum dos participantes deste evento considerar que eu estou a retratar injustamente as suas palavras ou posições, muito agradeço que me façam chegar o vosso parecer, com vista à melhoria de eventuais imprecisões ou incorrecções deste relato.

[1] Ordinatio Sacerdotalis, do Papa João Paulo II, 22 de Maio de 1994, que define de forma definitiva e irreformável que «a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja».

[2] Sacerdotalis Caelibatus, do Papa Paulo VI, 24 de Junho de 1967, que defende e reforça a disciplina do celibato sacerdotal, respondendo às críticas feitas a essa disciplina.

[3] Quer a Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais, emitida pela Congregação para a Doutrina da Fé a 1 de Outubro de 1986, quer as Considerações sobre os projectos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, também da Congregação para a Doutrina da Fé, emitida a 3 de Junho de 2003, reafirmam a perene doutrina cristã sobre o matrimónio e sobre a imoralidade dos actos homossexuais. Duas coisas ressaltam à vista, nestes documentos, com toda a clareza: por um lado, a distinção entre as pessoas com tendências homossexuais, que não pecam se viverem em castidade, e os actos homossexuais, esses sim imorais; e por outro lado, a refutação dos que falam em "exclusão" das pessoas homossexuais por parte da Igreja Católica, como é o caso do "Nós Somos Igreja", uma vez que basta notar que o primeiro documento referido tem no seu título a expressão "atendimento pastoral das pessoas homossexuais", o que elimina de vez a falsidade dessa linguagem de "exclusão".

[4Humanae Vitae, do Papa Paulo VI, 25 de Julho de 1968, que define, em continuidade com a tradição da Igreja, a ilicitude moral dos meios artificiais de regulação dos nascimentos: "(...) Mas, chamando a atenção dos homens para a observância das normas da lei natural, interpretada pela sua doutrina constante, a Igreja ensina que qualquer ato matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida". A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Vaticano II, aborda o tema de forma genérica no seu ponto 51, concluindo: "Segundo estes princípios, não é lícito aos filhos da Igreja adoptar, na regulação dos nascimentos, caminhos que o magistério, explicitando a lei divina, reprova", com referência em nota de rodapé aos ensinamentos de Pio XI (Encíclica Casti Connubii) e Pio II (Alocução ao Congresso da União Italiana de parteiras, 29 de outubro 1951). O Vaticano II não tratou directamente da questão da contracepção, pois Paulo VI retirou esse tema da agenda do Concílio, entregando-o a uma Comissão extra-conciliar. Esta Comissão, contrariando a tradição da Igreja, concluiu da licitude da contracepção artificial quando usada pontualmente no contexto de um matrimónio globalmente aberto à vida. Com a encíclica "Humanae Vitae", Paulo VI declarou a ilicitude da contracepção artificial, reafirmando a tradição da Igreja.

[5] James T. O'Connor, Vincent Ferrer Gasser, The Gift of Infallibility, Ignatius Press, São Francisco (E.U.A.), 2008, p. 106.