Relativamente a um texto do Helder Sanches que já havia referido há uns dias atrás, Jesus e a frequência do diálogo, quero aproveitar para responder neste espaço ao Helder, porque poderá ser útil a outras pessoas.
O Helder abordava duas questões diferentes, a do Jesus histórico e a da Santíssima Trindade, e manifestou-se intrigado pelo facto de eu me indignar com as dúvidas acerca do Jesus histórico, e depois aceitar a Santíssima Trindade sem qualquer hesitação.
É uma questão muito importante, e diz respeito à dualidade essencial entre Razão e Fé. Crer para entender. Entender para crer. O Helder Sanches esperava de mim o uso de critérios históricos quando eu me referisse à Santíssima Trindade. Diz o Helder:
«Você não respondeu às minhas dúvidas com os mesmos argumentos que utilizou inicialmente para justificar a verdade histórica de Jesus.»
Mas claro que não.
A questão da Santíssima Trindade não é uma questão histórica, mas sim pística, ou seja, uma questão de fé na doutrina da Igreja Católica. Como poderia eu usar os mesmos argumentos? Não quer isto dizer que não se possa argumentar racionalmente sobre a Trindade (os primeiros concílios ecuménicos praticamente só se dedicaram a esta questão). Há uns tempos atrás, falei do texto do filósofo Boécio acerca da Trindade, texto esse que expõe o conceito do Deus uno em essência mas trino em pessoas (ver De Trinitate), usando apenas raciocínio filosófico e sem fazer referências à revelação das Sagradas Escrituras.
Só que as argumentações, filosóficas ou teológicas, feitas sobre matéria de Revelação, como é o caso da Trindade, só se fazem "a posteriori" de uma adesão pística. Não vale de nada trabalhar racionalmente o conceito de Trindade se não recebemos tal conceito como verdadeiro através da graça da Fé, dom gratuito de Deus.
Nunca é demais insistir nestas questões, porque um conhecimento imperfeito acerca destes importantes detalhes teológicos e doutrinais é infinita fonte de problemas e de confusões.
A Teologia é o estudo racional da Revelação. Apoia-se, sobretudo, nas Sagradas Escrituras e na Tradição oral da Igreja. Usa, como ferramenta, uma filosofia cristã especialmente adequada para o tratamento destes temas.
Mas de nada serve a Teologia se não há Fé, se não há uma adesão intelectual inquestionável à veracidade da Revelação. Como posso caminhar no sentido de compreender melhor a luz divina se não a reconheço, se não a sigo, se não aponto o meu intelecto para ela?
«Afinal, você considera as dúvidas sobre a existência de Jesus um logro uma vez que, no seu entender, existem provas suficientes e comprovadas da verdade histórica do mesmo; agora, em relação a Deus e ao Espírito Santo você diz-me que qualquer cristão acredita na trindade porque Jesus fala dela. Bem, em que ficamos, então? Já não são precisas confirmações históricas fidedignas?
É que são domínios radicalmente diferentes, apesar de compatíveis. Nenhuma verdade histórica ou científica contradiz a doutrina revelada. E nenhuma parte da doutrina revelada contradiz algum facto ou evidência científico-histórica. Mas são coisas diferentes. Para falar de História, não preciso da Fé. Bastam-me os documentos, as provas, as "pistas" presentes em obras de autores do tempo que estudo, basta-me o rigor do método de trabalho, o rigor das ferramentas de trabalho, etc.
Um historiador digno desse título não procura defender a tese de que Cristo não existiu. Mesmo sem ter provas do ADN de Jesus, o historiador pode olhar para a colossal recolha de testemunhos indirectos de Jesus, da sua vida e obra, e reconhecer que a tese da sua inexistência não se adapta aos dados.
Não se trata de fazer o historiador jurar que Jesus existiu. Em Ciência não se trabalha assim. O historiador, como cientista, procura adaptar a melhor tese aos dados disponíveis. Face a esses dados, é insensato defender a tese de que Cristo não existiu. Mas a tese oposta não está demonstrada de forma irrefutável. E atrevo-me a dizer que são poucas as teses históricas demonstradas de forma irrefutável. Porque os eventos passados não são reprodutíveis em laboratório.
No entanto, isso não faz com a que a História perca o seu racional poder explicativo dos factos passados. Perante as evidências colossais, para quê, se não para patrocinar certas agendas ideológicas, propor uma tese histórica que não se adapta aos dados?
O Helder escreve ainda:
«Basta-lhe a palavra de alguém em quem você acredita, sabendo que esse alguém é deveras contestado historicamente?»
Sim, basta-me a palavra de Jesus Cristo em quem acredito totalmente e plenamente. Porque o vejo (graças à Fé) como Filho de Deus, Deus de Deus, e Deus não falha nem engana.
As contestações históricas que alguns fazem à existência de Jesus são feitas à revelia do rigor histórico. É sintomático da prática de má ciência história que muitos desses historiadores se recusem a usar referências documentais cristãs. Essa recusa é motivada por razões ideológicas e não científicas. Trata-se de, num claro abuso do que é ser historiador, dizer assim: "estes textos foram escritos por crentes cristãos - logo, são inúteis e falsos, porque são propaganda". Isto não é rigoroso nem científico. E já para não falar da "turma" dos que distorcem os dados históricos. Aqueles pseudo-historiadores que procuram propagar a chamada "alternative history", com pseudo-teorias incoerentes, ou desprovidas de provas, acerca de linhagens sagradas, túmulos de Jesus, casamentos com Maria Madalena, descendência, etc... Pergunte a um historiador ateu o que acha destas teses... Perante a falta de evidências, nada como fabricá-las, como fizeram os promotores e criadores do documentário "Bloodline".
«Lamentavelmente, voltamos à estaca zero e eu volto ao meu argumento inicial: uma vez mais, não importa, também no caso da Santíssima Trindade, qualquer validação histórica. Desde que o conceito venda, o mercado está garantido.»
Mas que validação histórica quer o Helder fazer à Santíssima Trindade, um conceito do mais transcendente que existe, e que podendo ser de certa maneira entendido pelo intelecto humano, é incompreensível porque o nosso finito intelecto não abarca (não "compreende") a totalidade da sua realidade, porque esta é infinita?
O que eu me limitei a escrever foi o óbvio: acreditamos na Santíssima Trindade porque Cristo nos falou do Pai e do Espírito como sendo Deus, e no entanto, pessoas distintas do Filho. A ideia da Santíssima Trindade não tem nada a ver com propaganda: basta ver a eficácia do Islão, que não usa nenhum conceito parecido. Porque razão a Santíssima Trindade ajudaria a um qualquer tipo de propaganda religiosa? A ideia em si é tão profunda, transcedente e sofisticada que não pode ter origem humana.
Faço-lhe um desafio: que livro imagina o Helder que venderá mais numa livraria? Uma obra filosófica explicativa da Trindade, como o De Trinitate de Boécio, ou um livro a apresentar mais uma sepultura com ossadas de Cristo, ou mais uma suposta prova de uma filha de Jesus com Maria Madalena? O que é que, realmente, funciona em termos de propaganda?
Estamos todos fartos de saber que a mentira vende sempre mais que a verdade...
«Só um à parte para o corrigir, se me permite, numa afirmação que faz: “A distinção das três pessoas é feita por Cristo. E por isso mesmo, é aceite pelos cristãos”. Isto não é verdade. A Santíssima Trindade é aceite, mas não por todos. Existem diversas facções cristãs - algumas bastante populares - que não subscrevem a doutrina trinitariana. Mas isso, claro, deve dever-se a questões de tradução e nunca a questões de veracidade.»
Caro Helder, gostaria de pegar no debate por este ponto. De que facções cristãs fala? É relativamente complicado a qualquer cristão que preza as Sagradas Escrituras como palavra de Deus negar a Santíssima Trindade. Há certos grupos que o fazem, mas não apresentam boa argumentação. Pode explicitar que grupos cristão "bastante populares" são esses?
A tradução dos textos sacros é matéria complexa e que exige muito rigor. Invocar "problemas de tradução" é apelar ao absurdo para tentar explicar o que não se compreende. Como é que o Helder Sanches argumenta no sentido de dizer que a noção de Santíssima Trindade dá azo a dúvidas interpretativas que se prendem com problemas de tradução?
Eu tenho um palpite: sucede com o Helder o que sucede com todos nós. Quando rejeitamos uma doutrina em bloco (como é o caso: o Helder rejeita o Cristianismo em bloco), tendemos a relativizar tudo. Para quem rejeita uma doutrina em bloco, todas as facções dentro dessa doutrina parecem igualmente erradas e irrelevantes para a veracidade das questões. Nesse contexto, o Helder, ou a maioria das pessoas que se encontram fora do contexto cristão, não sentem qualquer interesse em discernir quais dos grupos têm a verdade, porque eles acham que nenhum deles diz coisas verdadeiras.
É o relativismo do "outsider"!
E alguns, não digo que necessariamente o Helder, usam esse relativismo subjectivista para tentar argumentar assim: "Se diferentes grupos cristãos dizem coisas antagónicas a respeito de X, então X é falso ou não existe". Esta é uma dedução que eu não compreendo nem consigo seguir logicamente. Apoia-se em que regras da lógica? Se A diz que X existe e B diz que X não existe, devo admitir que X não existe? Porquê?
E isto pode ser extrapolado para um dos maiores erros clássicos do ateísmo relativista: "se várias religiões dizem coisas diferentes de Deus, então Deus não existe". Espantosa dedução lógica...
Um abraço ao Helder, cuja resposta fico a aguardar, sem pressas!
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