sexta-feira, 10 de outubro de 2003

Nobel da Paz

Os acontecimentos sucedem-se a um ritmo alucinante, por isso, cá vai mais um comentário...

Já é conhecido o nome do galardoado com o Nobel da Paz.
Chama-se Shirin Ebadi.
Trata-se de uma iraniana que tem desenvolvido um enorme trabalho pelos direitos humanos e pela dignidade da mulher nas sociedades islâmicas.

Não posso deixar de emitir a minha opinião.


Primeira Parte - O Papa

Para já, não foi feliz a colocação do Papa na lista dos nomeados para o Nobel, e isto principalmente por duas razões:
a) para os crentes, o Papa é o "fazedor de pontes" entre o Céu e a Terra, é esse o significado da palavra "pontifex", ou "pontífice"; para os crentes, colocar o trabalho deste Papa em prol da paz, que é intrínseco à sua função, ao nível do trabalho desenvolvido pelos outros nomeados pode ser ofensivo. Não por uma questão de esforço ou empenho pessoal, mas por uma questão de hierarquia. Mas enfim, o mundo hoje em dia é laico e isso é uma realidade.

b) ao colocar o Papa como nomeado, parece-me ainda mais ofensivo não lhe atribuir o Nobel; deste modo, o comité Nobel desiludiu-me mais uma vez; se eu atribuia ainda o benefício da dúvida ao comité por parecer querer afirmar de boa vontade o valor do trabalho de João Paulo II, desta vez tudo parece ser maquinado para relativizar a importância do Papa.

Segunda Parte - A nomeada Shirin Ebadi

Apesar de louvar o esforço de quem quer que trabalhe em prol dos Direitos Humanos, paira no ar uma sensação estranha, que mais uma vez é verificada pela notícia que li hoje no Público, na qual alguns comentadores realçaram a importância de se distinguir uma lutadora pela democracia no Islão.

Democracia no Islão?
Já não basta termos que sofrer com os nossos imperfeitos modelos de governação, e temos agora que impô-los à força numa sociedade plenamente tradicional como é o (verdadeiro) Islão?
Não chegam as aventuras de Bush na construção do "Iraque democrático"?

Devo explicar-me...

O Islão, como qualquer tradição que se preze, DEVE defender os direitos humanos, DEVE proteger e respeitar as mulheres, DEVE condenar o terrorismo, DEVE combater a ignorância e a superstição.

O Islão é feito, tal qual o cristianismo, de várias pessoas, vários grupos, vários movimentos, várias correntes, várias opiniões.

Como é evidente, algumas destas opiniões serão mais puras no seu islamismo, outras serão mais impuras, e nalguns casos mais extremos, poderão mesmo ser heréticas.

Os Taliban não são o Islão. São assassinos e criminosos fanáticos.
O regime iraniano idem. O Corão pode ser lido e interpretado ao sabor dos erros dos homens. Pode, mas não deve!

Mais uma vez, a obsessão do homem moderno ocidental em sistematizar tudo, e em simplificar demasiado assuntos que são complexos, pretende etiquetar o Islão como fanático, opressor, retrógrado, etc, etc...

E o cristianismo?

Não temos na História do Cristianismo uma lista de pessoas e movimentos que tentaram perverter a mensagem de Cristo?

Não temos a Teologia da Libertação e as suas perigosas aproximações marxistas?
Não tivemos Teilhard de Chardin que tentou materializar o cristianismo com o seu "Cristo evolutor"?
Não tivemos Alfred Loisy, o pai francês do Modernismo, cujas nefastas influências na intelectualidade cristã ainda hoje se fazem sentir?

Porque não então admitir que está a suceder o mesmo no Islão?
A função clara dos Taliban é, sob a máscara da ortodoxia (que é sempre desejável), destruir o Islão por dentro.

Um islâmico defensor da democracia é tão ilógico com um Taliban dizer-se islâmico...

Temos, isso sim, que olhar para estes acontecimentos a partir de um ângulo mais generalista.

O que se passa é que assistimos, por toda a parte, à destruição das tradições e da verdadeira espiritualidade. Este trabalho começou há alguns séculos, com mudanças sociais e mentais. Neste momento, o trabalho continua através da implosão das religiões que ainda subsistem.

Assim, para quem lê nas entrelinhas, este Nobel até pode ter sido bem atribuido, mas o contexto que o rodeia, sobretudo o abuso anti-tradicional que se faz dele, é mais um sinal dos tempos, da "Idade Escura" de que escrevi há pouco.

Bernardo