sexta-feira, 24 de outubro de 2003

Criação

Volto de novo a esta noção essencial de Criação, começando por traduzir um pequeno excerto de René Guénon:

«Estas últimas considerações levam-nos directamente a explicar a ideia de "criação": esta concepção, que é tão estranha aos Orientais, excepto aos Muçulmanos, como o foi na antiguidade greco-romana, aparece como especificamente judaica na sua origem; a palavra que a designa é latina na sua forma, mas não na acepção que recebeu com o Cristianismo, porque "creare" não queria dizer à partida nada mais que "fazer", sentido que sempre permaneceu, em sânscrito, o da raíz verbal "kri", que é idêntica a esta palavra; ocorreu uma modificação profunda do significado, e este caso é, como o dissemos, similar ao caso do termo "religião". Foi evidentemente do Judaísmo que a ideia passou ao Cristianismo e ao Islamismo; e quanto à sua razão de ser essencial, ela é no fundo a mesma da interdição dos símbolos antropomorfos. Com efeito, a tendência a conceber Deus como "um ser" mais ou menos análogo aos seres individuais e particularmente aos seres humanos, teve por corolário natural, onde quer que ocorreu, a tendência de se lhe atribuir um papel simplesmente "demiúrgico", ou seja uma acção que se exerce sobre uma "matéria" suposta exterior a ele, o que é o modo de acção próprio dos seres individuais.
Nestas condições, era necessário, para salvar a noção de unidade e infinidade divinas, afirmar expressamente que Deus "fez o mundo do nada", ou seja, de nada que lhe fosse exterior, e cuja suposição teria por efeito limitá-lo, dando origem a um dualismo radical. A heresia teológica não é senão a expressão de um absurdo metafísico, o que é o caso habitual; mas o perigo, inexistente quanto à metafísica pura, torna-se muito real no ponto de vista religioso, porque o absurdo, sob esta forma derivada, não aparece tão imediatamente. A concepção teológica da "criação" é uma tradução apropriada da concepção metafísica da "manifestação universal"; e a melhor adaptada à mentalidade dos povos ocidentais; mas não existe equivalência a estabelecer entre estas duas concepções, desde logo que há necessariamente entre elas toda a diferença dos pontos de vista respectivos aos quais elas se referem: é mais um exemplo que vem apoiar o que expusemos no capítulo precedente."
- René Guénon, "Introduction Génerale à L'Étude des Doctrines Hindoues" (1921), pp. 120 e 121.

O que Guénon quer dizer é que a noção de Criação surgiu como conceito teológico para evitar precisamente o abaixamento de Deus, o Criador, ao papel de um simples "demiurgo", de um ser que produzisse o Mundo a partir de algo que lhe era exterior.

Há dois erros que importa evitar no que diz respeito à Criação:

1. Deus não criou o Mundo a partir de algo que lhe fosse exterior
2. O Mundo não emanou de Deus, no sentido em que houve uma transferência de substância entre Deus e a Criação.

Estes dois erros foram repetidamente apresentados pela Igreja Católica como constituindo anátema. Também o Islão repousa num puro conceito monoteísta que rejeita, portanto, estes dois erros.

O erro nº.1 é relativamente simples de aceitar como tal, porque admitir que Deus tivesse criado o Mundo a partir de algo que lhe fosse exterior seria dizer imediatamente que Deus não era infinito e uno.

O erro nº.2 é mais complicado de entender. Para o entendermos, podemos recorrer ao Credo, na forma do Símbolo de Niceia:

"Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem, factorem caeli et terrae, visibilium omnium et invisibilium.
Et in unum Dominum Iesum Christum, Filium Dei unigenitum, et ex Patre natum ante omnia saecula.
Deum de Deo, Lumen de Lumine, Deum verum de Deo vero, genitum non factum, consubstantialem Patri; per quem omnia facta sunt.
Qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de caelis.
Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine, et homo factus est.
Crucifixus etiam pro nobis sub Pontio Pilato, passus et sepultus est, et resurrexit tertia die, secundum Scripturas, et ascendit in caelum, sedet ad dexteram Patris.
Et iterum venturus est cum gloria, iudicare vivos et mortuos, cuius regni non erit finis.
Et in Spiritum Sanctum, Dominum et vivificantem, qui ex Patre Filioque procedit.
Qui cum Patre et Filio simul adoratur et conglorificatur: qui locutus est per prophetas.
Et unam, sanctam, catholicam et apostolicam Ecclesiam.
Confiteor unum baptisma in remissionem peccatorum.
Et expecto resurrectionem mortuorum, et vitam venturi saeculi.

Amen."


Como podemos ler, relativamente à segunda pessoa da Trindade, Jesus Cristo, é dito:

"(...) et ex Patre natum ante omnia saecula. (...) genitum non factum, consubstantialem Patri"

ou seja

"(..) nascido do Pai antes de todos os séculos. (...) gerado não criado, consubstancial ao Pai"

Isto implica claramente duas coisas:

1. Jesus Cristo é "anterior" à Criação, com o cuidado de não dar à palavra "anterior" um significado cronológico mas sim causal
2. Jesus Cristo é da mesma substância do Pai ("homoousion" em grego), ao contrário da Criação.

Por isso, vemos que a Criação não emana do Pai, ou seja, a substância da Criação não é a mesma da do Pai. Por isso, a Criação "ex nihilo", "do nada", é uma verdade essencial para as religiões monoteístas.

Como advertência final, devo referir que a citação de Guénon deve ser contextualizada.
Guénon colocou a Teologia num plano inferior ao que ele chamou de "metafísica" e que corresponde à "jaina" hindu, e à "gnose" grega. Tal posição foi fortemente contestada, e sobressai como um dos grandes problemas para a compreensão do legado de Guénon.

A recusa da parte de Guénon em usar o termo "gnose", preferindo o termo "metafísica", vem do facto de que o repugnava ser acusado de "gnóstico". Frequentemente Guénon distinguiu o que se devia entender como "gnose" daquilo que era clara heresia, o "gnosticismo".
Mas este assunto, demasiado extenso, fica para outra altura.

Bernardo

Sem comentários: