A Ana Matos Pires apresentou recentemente um estudo do New England Journal of Medical Science intitulado Induced First-Trimester Abortion and Risk of Mental Disorder. Esse estudo, publicado a 27 de Janeiro de 2011, apresenta conclusões muito cautelosas:
«The finding that the incidence rate of psychiatric contact was similar before and after a first-trimester abortion does not support the hypothesis that there is an increased risk of mental disorders after a first-trimester induced abortion.»
A metodologia seguida foi esta:
«We conducted a population-based cohort study that involved linking information from the Danish Civil Registration system to the Danish Psychiatric Central Register and the Danish National Register of Patients. The information consisted of data for girls and women with no record of mental disorders during the 1995–2007 period who had a first-trimester induced abortion or a first childbirth during that period. We estimated the rates of first-time psychiatric contact (an inpatient admission or outpatient visit) for any type of mental disorder within the 12 months after the abortion or childbirth as compared with the 9-month period preceding the event.»
Em suma: procurou-se verificar se existia correlação entre um abortamento de primeiro trimestre em mulheres sem registo prévio de problemas mentais, e um subsequente contacto entre essas mulheres e um psiquiatra.
Não me parece que o estudo tenha sido mal conduzido. O problema é que a conclusão do estudo é falaciosa. Segundo os autores do estudo, os resultados do mesmo "não sustentam a hipótese de que há um incremento no risco de problemas mentais após um aborto de primeiro trimestre". No entanto, usando lógica elementar, vê-se que os resultados do mesmo também não sustentam a hipótese contrária.
A conclusão do estudo poderia ser interpretada por algumas pessoas na forma de argumento "modus tollens":
1. Se o aborto de primeiro trimestre causar problemas mentais, as mulheres que se submetem a tal aborto tenderão a procurar ajuda psiquiátrica
2. As mulheres que fizeram parte do conjunto-alvo do estudo não manifestaram uma clara procura de ajuda psiquiátrica após o aborto de primeiro trimestre
Conclusão: O aborto de primeiro trimestre não parece causar problemas mentais
Este argumento é logicamente válido, mas a premissa 1 é muito discutível. Uma mulher que aborta mais depressa procura a ajuda de uma amiga ou de um familiar do que ajuda psiquiátrica. É que os efeitos psíquicos do aborto não são comparáveis com os de outros problemas mentais. O profundo sentimento de culpa da mulher que abortou (uma reacção, diga-se de passagem, perfeitamente normal e mentalmente salutar) leva-a, frequentemente, a preferir a privacidade ou a procurar apoio junto de pessoas do seu círculo próximo de confiança. Se uma pessoa que sofre problemas de depressão pode, naturalmente, procurar ajuda psiquiátrica ou psicológica, o mesmo não é linear com uma pessoa que sente um profundo sentimento de culpa e de remorso. Se uma mulher se sente culpada do aborto que procurou, é muito pouco provável que se vá apresentar a um psiquiatra. O peso da responsabilidade moral faz com que, instintivamente, a pessoa não confunda essa situação com a situação de uma doença ou perturbação mental, pois nestes últimos casos não faz sentido discutir culpas. Ninguém sente culpa por ter uma doença, física ou mental. Mas a situação psicológica de uma mulher que procurou um aborto pode ser radicalmente diferente pela presença da culpa.
A conclusão do estudo está redigida de forma a evitar o argumento "modus tollens": note-se como os autores dizem apenas que o estudo "não sustenta a hipótese de que há um incremento no risco de problemas mentais após um aborto de primeiro trimestre". Eles sabem bem que a premissa 1, na forma atrás apresentada, não é sustentável. Se tal premissa fosse sustentável, eles poderiam ter sido mais arrojados no estudo, declarando ter provado não existir correlação entre aborto provocado no primeiro trimestre e sequelas mentais: o argumento "modus tollens" seria perfeitamente válido.
Está aqui a fragilidade do estudo. Pela falta de consistência da suposta relação causal entre aborto provocado e procura de ajuda psicológica ou psiquiátrica, o estudo sai coxo e de pouco serve. Não é que seja impossível que uma mulher procure apoio psicológico após um aborto: isso pode acontecer. O que é inverosímil é que haja uma relação causal clara entre ter sequelas psicológicas derivada de um aborto e procurar, consequentemente, apoio profissional.
De forma análoga, seria um pouco como conduzir um estudo para medir quantas pessoas com problemas de alcoolismo procurariam ajuda profissional na sequência de recaídas graves. É de esperar que nem todas as pessoas com problemas de alcoolismo procurem tal ajuda. A sensação de culpa e de vergonha que assola uma pessoa com problemas de alcoolismo serve como bloqueio a que muitas pessoas nessa situação cheguem a procurar ajuda.
Questões técnicas à parte, o que me choca é a atitude de pessoas como a Ana Matos Pires. Aqui temos uma mulher que tem uma visão brutalmente errada acerca da dignidade de uma mulher grávida, e que aparentemente não se importa de sofismar para proteger a sua insustentável defesa do pretenso "direito" ao aborto. Num texto da sua autoria, ela chega ao ponto de apresentar efeitos psicológicos benéficos decorrentes de um aborto:
«Mas também não minto se afirmar que é, em simultâneo e para muitas mulheres, fonte de alívio, de eutimia e de normalização da reactividade emocional.»
É claro que mente. Que tal sensação de "alívio" e de "eutimia" (ah, nada como usar termos técnicos para esconder erros argumentativos) seja sentida por algumas mulheres logo após o aborto até não surpreende. No instante imediato, é provável que algumas delas se sintam livres dos receios que tinham, receios esses derivados da gravidez (abandono do namorado, perda de emprego, problemas financeiros, etc.). O que interessa é o resto da vida dessas mulheres. O que é relevante, e que a Ana Matos Pires simplesmente descarta, não é a imediata "eutimia" mas sim o choque psicológico que vai acompanhar qualquer mulher mentalmente sã para toda a sua vida: "matei o meu filho!". Por isso, o aborto nunca pode ser "fonte de normalização da reactividade emocional". Que o aborto proporcione, no imediato, um sensação de alívio e de "eutimia" é algo que se espera: é sabido que as mulheres abortam, frequentemente, em situação de medo, de desespero, de pânico perante o futuro. Agora, dizer que o aborto é "fonte" de uma espécie de bem-estar normalizador é uma bruta mentira. Como se pode ignorar, de forma tão descarada, o facto óbvio de que o aborto é um acto de desespero? O facto óbvio de que, se lhes derem ajuda financeira e emocional, se lhes derem encorajamento, se elas não se sentirem ameaçadas com a perda iminente de emprego, com o abandono dos namorados, e outras ameaças do género, a esmagadora maioria das mulheres leva a gravidez para a frente?
Perante a brutalidade do aborto, que poucas mulheres conseguem ignorar durante muito tempo, qualquer mulher normal acaba, mais cedo ou mais tarde, por se dar conta do horror desse acto que pediu para lhe cometerem: filicídio. É de filicídio que estamos a falar! Qualquer pai ou mãe só pode ficar profundamente afectado quando se dá conta de que cometeu filicídio, e se isso acontece em filicídio acidental, quando um pai ou uma mãe mata o seu filho por acidente, quanto mais em situações como a do aborto, em que a vontade da mulher (nem sempre livre, porque muitas vezes é socialmente pressionada para abortar) foi decisiva na morte do seu filho ou filha.
E, perante o horror óbvio do filicídio, e perante a chaga, a marca psicológica indelével que tal mulher portará toda a vida, a Ana Matos Pires entrega-se ao exercício de sofismar. É espantoso! Como mulher que é, pois não sei se também será mãe, mas como mulher que é, ela deveria ter um bocadinho mais de consideração pela saúde mental das mulheres.
Que a causa do pretenso "direito" ao aborto é uma causa irracional, desumana e sustentada em argumentação falaciosa e anti-científica, já se sabe. Mas que uma mulher chegue ao cúmulo de negar o óbvio sofrimento de outras mulheres, invocando pseudo-argumentos e estudos científicos de conclusões tendenciosas, para fazer a desesperada defesa do indefensável, é algo que me parece espantoso e cruel.
2 comentários:
E a desonesta sou eu, muito me conta. De maswoquista tenho muito pouco e só respondo a provocações quando me apetece, como não é o caso ficamos mesmo por aqui.
Pois, Ana, fazer-se de provocada é uma manobra ágil e fácil da sua parte para evitar ter que responder aos argumentos que constam do meu "post".
Eu não me importo por aí além. É preciso ter alguma humildade, honestidade intelectual e seriedade para interagir com argumentos e com críticas.
Já fico satisfeito por proporcionar aos seus leitores e a outros um valioso contraditório, cujo único objectivo consta em repor a verdade e a objectividade.
Não tenho nenhuma cruzada contra si (nem a conheço), e não me tenho assim em tão grande conta para me regozijar com a demonstração da irracionalidade dos pontos de vista que a Ana defende.
Cumprimentos
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