domingo, 30 de maio de 2004

A luz visível e as "sete cores" do arco-íris

É hoje em dia comum dizer-se que o arco-íris tem sete cores: encarnado, laranja, amarelo, verde, azul, lilás e violeta. Esta é uma das situações mais típicas, como diz Guénon, da deformação de uma ideia perfeitamente tradicional devido à perda da compreensão do significado profundo dessa mesma ideia.

Iremos percorrer algumas das explicações dadas por René Guénon no seu artigo Les sept rayons et l'arc-en-ciel (publicado pela primeira vez na revista Études Traditionelles, em Junho de 1940), aproveitando para confrontá-las com alguns conceitos de óptica e de teoria da cor. Este confronto das ideias tradicionais, que Guénon magistralmente nos expõe, com os conceitos da ciência moderna é fundamental para evitar que nos dirijam acusações de "obscurantismo científico". Mostraremos assim que não queremos invalidar os factos científicos, apenas queremos que o significado destes seja plenamente alcançável através de coordenadas tradicionais, e não apenas através do limitado e profano "método científico".

"Já falámos em diversas ocasiões do simbolismo dos «sete raios» do sol; poderíamos perguntar-nos se estes «sete raios» não têm alguma relação como o que se designa ordinariamente como as «sete cores do arco-íris», porque estas representam literalmente as diferentes radiações que compõem a luz solar. Há de facto uma relação, mas, ao mesmo tempo, estas ditas «sete cores» são um exemplo típico da forma como um conceito tradicional autêntico pode ser por vezes deformado pela incompreensão comum."

Comecemos por analisar um pouco as cores do arco-íris. Se pensarmos um pouco, vemos que não há razão para que se fale em "sete cores" mas sim em seis. Vejamos... São três as cores primárias: encarnado, amarelo e azul. São também três as cores secundárias: laranja, verde e violeta. Como se sabe, "laranja" resulta da adição da cor primária "encarnado" com a cor primária "amarelo". Do mesmo modo, "verde" resulta da soma de "amarelo" com "azul", e violeta da soma de "azul" com "encarnado". Este facto concreto, de que as cores secundárias se extraem das primárias por adição, é que dá o epíteto de "primárias" ao encarnado, ao amarelo e ao azul.


Esquema triangular de cores



Assim, o esquema triangular de cores dá-nos uma razão de ser para a identificação de seis cores no arco-íris. Obviamente que o espectro visível é uma gama contínua de cores, mas é inegável que o olho humano consegue distinguir claramente no arco-íris (ou na reflexão da luz através de um prisma) as três cores primárias intercaladas por curtas bandas de cores secundárias. Temos assim, na faixa do visível:

Encarnado (primária, faixa longa)
Laranja (secundária, faixa curta)
Amarelo (primária, faixa longa)
Verde (secundária, faixa curta)
Azul (primária, faixa longa)
Violeta (secundária, faixa curta)

Não é, por isso, necessário acrescentar uma sétima cor. Então, porque é que se tornou costume fazê-lo? Porquê a necessidade de ter um septenário?

Essa necessidade de um septenário é real e correcta. Contudo, a solução que se encontrou ao adicionar uma sétima cor revela uma profunda incompreensão desta necessidade de sete termos. O sétimo termo não é uma cor, não é um termo como os outros. É um "sétimo raio", e não uma sétima cor... É sim, como diz Guénon, o "raio central" ou "raio axial", e corresponde à luz branca.

É evidente que não necessitamos de mais uma sétima cor no esquema triangular que apresentámos atrás!

"Com efeito, podemos colocar as três cores fundamentais nos três vértices de um triângulo, e as três cores complementares nos de um triângulo inverso do primeiro, de tal forma que cada cor fundamental e a sua complementar se encontram colocadas em pontos diametralmente opostos; e vemos que a figura assim formada não é outra senão a do «selo de Salomão». Se traçarmos o círculo no qual está inscrito o duplo triângulo, cada uma das cores complementares ocupa o ponto situado a meio do arco compreendido entre os pontos das duas cores fundamentais de cuja combinação ela resulta (...); as nuances intermediárias correspondem naturalmente a todos os pontos da circunferência, mas no duplo triângulo que é aqui o essencial, não há evidentemente lugar para mais de seis cores.»

As cores do arco-íris são assim percorridas desde o encarnado até ao violeta, através de um percurso sobre a circunferência descrita por Guénon, que no diagrama que apresentamos, é um percurso no sentido dos ponteiros do relógio. Todo o espectro da luz visível é obtido por percursos sobre esta circunferência. Primeira objecção: olhando para as cores como radiações monocromáticas, e não como somas de cores, temos que a cada cor (a cada ponto da circunferência) corresponde uma onda de frequência fixa. Então e não há um salto de frequência, ou seja uma descontinuidade, ao passar do violeta para o encarnado?

Há, se nos limitarmos a considerar a luz visível como algo de quantitativo, como uma "janela" no espectro electromagnético. Como uma gama contínua de frequências. Mas a luz visível é muito mais do que isso. Sigamos de novo Guénon:

"Podemos notar de passagem que o facto das cores visíveis ocuparem assim a totalidade da circunferência e se juntarem sem nenhuma descontinuidade mostra que elas formam realmente um ciclo completo (o violeta participando ao mesmo tempo do azul do qual é vizinho e do encarnado que se encontra na outra extremidade do arco-íris), e que, consequentemente, as outras radiações solares não visíveis, as que a física moderna designa como raios «infravermelhos» e «ultravioletas», não pertencem de forma alguma à luz e são de uma natureza totalmente diferente desta; não se trata então, como alguns parecem crer, de «cores» que uma imperfeição dos nossos órgãos nos impediria de ver, porque estas pretensas cores não poderiam tomar parte alguma desta circunferência, e não seríamos capazes de admitir que esta fosse uma figura imperfeita ou que ela apresentasse uma qualquer descontinuidade."

Ao não dar à luz visível uma natureza diferente, ao considerá-la como uma mera gama contínua de frequências no espectro electromagnético, estamos a ser limitados pela estreiteza de vistas da ciência moderna, que apresenta um carácter predominantemente profano. Há, contudo, resultados da ciência moderna que se aproximam surpreendentemente da perspectiva tradicional, como não podia deixar de ser, desde que continuem a existir cientistas ao mesmo tempo clarividentes e isentos. É o caso dos resultados produzidos por Herman Günther Grassman...

Em 1853, o matemático elaborou três leis fundamentais:

1. Toda a sensação de cor pode ser produzida de forma unívoca pela soma de três cores fundamentais.

2. Numa soma de cores, cada uma das cores pode corresponder a uma onda monocromática ou a uma soma de cores; assim, ao somar uma cor com verde, seria, por exemplo, igual usar um feixe monocromático verde ou a soma de um feixe amarelo com um azul.

3. Uma cor permanece inalterada se não se mudarem as proporções das cores que a compõem. Podemos assim, numa combinação de cores, aumentar ou diminuir igualmente a intensidade de cada cor, que a cor resultante permanece a mesma, mudando apenas a claridade.

Com estas leis, tira-se uma conclusão fundamental: para representar uma cor, não necessitamos de três termos, mas apenas de dois, se em vez das intensidades das cores fundamentais usarmos os rácios das mesmas. O branco resultará sempre se usarmos a mesma quantidade das três cores fundamentais. Veja-se como exemplo de mapa de cores o gráfico bidimensional (em cada eixo temos os rácios das cores fundamentais) fixado pela Comission Internationale d'Éclairage (1931):



O gráfico é surpreendentemente semelhante ao nosso duplo triângulo! A ênfase dada pelo gráfico da natureza "fechada" da luz visível aproxima-nos do verdadeiro significado da cor, que nos escapava com a simples contemplação do espectro electromagnético. Obviamente que a natureza parabólica das fronteiras do gráfico deve-se ao artifício matemático de usar rácios das cores fundamentais. De outra forma, teríamos um gráfico tridimensional para a cor.

E a questão do sétimo termo? Como explicar o septenário?
Regressemos a Guénon...

"Para resolver a questão do sétimo termo que deve realmente se somar às seis cores para completar o septenário, é preciso reportarmo-nos à representação geométrica dos «sete raios», tal como explicámos noutra ocasião, pelas seis direcções do espaço, formando uma cruz tridimensional, e o próprio centro de onde saem estas direcções. Importa notar desde já as estreitas semelhanças desta representação com aquela de que temos vindo a falar e que diz respeito às cores: como estas, as seis direcções estão opostas duas a duas, seguindo três linhas rectas que, se estendendo de uma parte e de outra do centro, correspondem às três dimensões do espaço; e se quisermos dar-lhes uma representação plana, não podemos evidentemente senão representá-las por três diâmetros formando uma roda de seis raios (esquema geral do «crisma» e de diversos outros símbolos equivalentes); ora estes diâmetros são os que unem os vértices opostos dos dois triângulos do «selo de Salomão», de modo que as duas representações não são senão uma na realidade. Disto resulta que o sétimo termo deverá, em relação às seis cores, desempenhar o mesmo papel que o centro em relação às seis direcções; e, de facto, ele seria colocado no centro do esquema, ou seja, no ponto onde todas as oposições aparentes se resolvem na unidade.»

Vemos assim que as seis cores são análogas às seis direcções do espaço. O "sétimo raio" torna-se no raio principal. É deste "raio" que se decompõem todos os outros seis. Vemos então que ele não pode senão ser a cor branca, ou seja, a soma de todas as cores. É na unidade do branco que se encontram virtualmente todas as cores. Vemos assim, como diz Guénon, que a "cor" branca é tão incolor como o centro geométrico das direcções do espaço é "adimensional".

Sobre o "branco", diz Guénon que:
"ele não aparece no arco-íris, tanto quanto o «sétimo raio» não aparece numa representação geométrica; mas todas as cores não são senão o produto de uma diferenciação da luz branca, do mesmo modo que as direcções do espaço não são senão o desenvolvimento das possibilidades contidas no ponto primordial."

Estas constatações dão à luz visível um significado profundamente ligado à essência do mundo manifestado. Dão também, ao Homem, um lugar único no cenário da Criação. Não somos apenas um animal cujos órgãos vêem uma determinada faixa da radiação electromagnética, cujo início e fim foram fixados arbitrariamente ou por qualquer pretensa "lei evolutiva". O facto da luz visível ocupar um lugar único no mundo manifestado, e do Homem ser a criatura melhor adaptada a ela, faz de nós personagens-chave na economia Divina. Somos, de facto, feitos à imagem e semelhança de algo que nos transcende largamente.

Terminemos com as conclusões de Guénon:
"Poderíamos dizer que, num septenário assim constituído, um está no centro e seis na circunferência; noutros termos, um tal septenário é formado da unidade e do senário, a unidade correspondendo ao princípio não manifestado e o senário ao conjunto da manifestação. Poderíamos fazer uma aproximação entre este e o simbolismo da «semana» no Génesis hebraico, porque, também neste, o sétimo termo é essencialmente diferente dos outros seis: a criação, com efeito, é a «obra dos seis dias» e não dos sete; e o sétimo dia é o do «repouso». Este sétimo termo, que poderíamos designar como o termo «sabático», é também verdadeiramente o primeiro, porque este «repouso» não é outra coisa senão a reentrada do Princípio criador no estado inicial de não manifestação (...)."

Bernardo

domingo, 23 de maio de 2004

Roberto Calvi

São negros os contornos do assassinato de Roberto Calvi, mas bem ao estilo da Máfia. Em Junho de 1982, Roberto Calvi, administrador do Banco Ambrosiano, viajava para Londres após o colapso da instituição bancária à qual predisia.

Foi encontrado morto, a 18 de Junho de 1982, sob a Blackfriars Bridge, com tijolos nos bolsos e 15 mil libras em dinheiro. Provas de peritagem forense concluiram que o banqueiro nunca tocou nos tijolos que tinha nos bolsos.

O site "Misteri d'Italia" está carregado de informação sobre este e outros casos correlacionados.

A família, a viúva Calvi e o filho Roberto, sempre defenderam a tese do homicídio. Esperam há 22 anos que se encontrem e julguem, não só os perpetradores materiais do crime, mas também o seus instigadores, os autores morais.

A BBC News mencionou esta semana que quatro pessoas irão ser julgadas numa primeira fase pelo assassinato do banqueiro do Ambrosiano.

Algumas já são caras conhecidas: o mafioso Pippo Calo (que será julgado por videoconferência, uma vez que está a cumprir duas penas de prisão perpétua), e Flavio Carboni. Faz-se referência a uma mulher austríaca, capturada em Dezembro de 2003. As autoridades da Cidade de Londres estão a trabalhar activamente com a justiça italiana, e na sequência desta detenção no ano passado, o processo foi reaberto.

Roberto Calvi pertencia à loja maçónica Propaganda Due (P2), de Licio Gelli.
As suas ligações perigosas à Máfia são também sobejamente conhecidas. Contudo, a Máfia não mata sem uma razão forte. A Máfia também mata por encomenda.

O banco privado católico Ambrosiano, liderado por Roberto Calvi, teve um historial de contactos financeiros muito próximos com o IOR (Istituto Opere di Religione), o Banco do Vaticano.

Não quero com este artigo criticar, como é tradicional de certos movimentos anti-católicos, se o Vaticano deve ou não ter um Banco. É evidente que deve. Gostava, isso sim, de manifestar a minha vontade de ver este processo ir até ao fim, com a condenação dos autores materiais, mas também dos autores morais, que poderão ocupar importantes lugares em instituições supostas acima de suspeitas. Que se vá até ao fim! A dignidade e respeitabilidade da Igreja Católica, que está infelizmente muito próxima deste fumoso episódio Calvi, merecem que se descubram os culpados, que se aplique a Justiça, e que se evitem semelhantes situações no futuro.

Um certo pragmatismo de algumas elites liderantes, que crêem que os fins justificam os meios, mancham por vezes a folha de cadastro das instituições que lideram. Que caia por terra todo o tipo de pragmatismo! Os fins não justificam os meios. Que se reconheçam as faltas, e que se peça humildemente perdão aos Homens e a Deus...

Bernardo

quarta-feira, 19 de maio de 2004

O caos social e a questão da competência

Retirado do La Crise du Monde Moderne, de René Guénon:

«(...) regressemos às consequências que acarreta a negação de toda a verdadeira hierarquia, e notemos que, no presente estado das coisas, não somente um homem apenas cumpre a sua função própria excepcionalmente e por acidente, enquanto que deveria suceder precisamente o contrário, como chega a acontecer que o mesmo homem seja chamado a exercer sucessivamente funções totalmente diferentes, como se ele pudesse mudar de aptidões à vontade. Isto pode parecer paradoxal numa época de "especialização" extrema, e contudo é o que sucede, sobretudo na ordem política; se a competência dos "especialistas" é frequentemente bastante ilusória, e em todo o caso limitada a um domínio muito estreito, a crença nesta competência é não obstante um facto, e podemos perguntar-nos como é possível que esta crença não desempenhe algum papel quando se trata da carreira dos homens políticos, onde a incompetência mais completa é raramente um obstáculo. Contudo, se reflectirmos, apercebemo-nos facilmente que não há que ficar espantado, e que se trata em soma de um resultado muito natural da concepção "democrática", em virtude da qual o poder vem de baixo e apoia-se essencialmente na maioria, o que tem necessariamente por corolário a exclusão de toda a verdadeira competência, porque a competência é sempre uma superioridade pelo menos relativa e não pode ser senão o apanágio de uma minoria» - René Guénon, La Crise du Monde Moderne, capítulo VI (Le Chaos Social), pág. 86-87.

Bernardo

O "Juramento Jesuíta" (continuação)

Qual será então a origem do texto do "juramento"?

O que se diz é que a inspiração para este texto parece provir de um romance de Charles Didier, chamado Rome Souterraine, que teve tradução para inglês alguns anos mais tarde após a sua publicação.

A publicação original ocorre em 1833. O escritor Victor Hugo conheceu bem Charles Didier, bem como este romance, que teve algum sucesso.
A tradução foi de facto obra de um jesuíta dissidente, Alberto Rivera, que a verteu para inglês, sendo a tradução editada em Nova Iorque em 1843. O Rome Souterraine é, sobretudo, um romance de intriga entre alguns carbonários e as forças papais. Charles Didier explica deste modo o contexto do seu romance:

«Deux éléments rivaux ont constitué pendant tout le moyen âge le corps italien : l’élément guelfe et l’élément gibelin. Né de la lutte même, et peu à peu détaché des deux autres, un troisième élément a fini par se dégager tout à fait ; c’est l’élément populaire, l’élément du progrès. […] chassé, il se réfugia dans les entrailles de la terre. Le carbonarisme fut dès lors appelé à le représenter en Italie.»
Fonte: Guermès, Sophie, "Les écrivains de langue française témoins du Risorgimento" - Resumo de uma participação no seminário "L'Écrivain Dans l'Histoire", Universidade Marc Bloch (Strasbourg II), onde a autora fala sobre Charles Didier e a sua obra Rome Souterraine.

Assim, sem ler o romance, é difícil saber se Charles Didier se baseou nalguma coisa de fiável para escrever o famoso "juramento". Contudo, se a obra é um romance, existe uma grande probabilidade de tudo se tratar de criação artística.

Qual é o meu palpite? É que pode haver diferenças grandes entre a postura do romancista Charles Didier, e o aproveitamento que Alberto Rivera poderá ter feito do romance Rome Souterraine. As opiniões de um dissidente valem o que valem. Tudo depende da honestidade do dissidente. Em relação ao European Institute for Protestant Studies, não estou qualificado para comentar a sua credibilidade. Posso apenas comentar, baseado no site e no pouco que conheço do seu criador.

Agora, parece-me muito suspeita e inadequada a forma como este instituto apresenta os factos, sem mencionar uma palavra sequer sobre a questão eleitoralista que explica a inclusão do "juramento" nos Congressional Records:

«[The following is the text of the Jesuit Extreme Oath of Induction as recorded in the Journals of the 62nd Congress, 3rd Session, of the United States Congressional Record (House Calendar No. 397, Report No. 1523, 15 February, 1913, pp. 3215-3216), from which it was subsequently torn out. The Oath is also quoted by Charles Didier in his book Subterranean Rome (New York, 1843), translated from the French original. Dr. Alberto Rivera, who escaped from the Jesuit Order in 1967, confirms that the induction ceremony and the text of the Jesuit Oath which he took were identical to what we have cited below. – A. N.]»

Ao que me parece, este pomposo Institute for Protestant Studies mais parece uma fachada para o movimento anti-católico de Ian Paisley, cujas mãos aparentam estar enfiadas bem fundo na negra questão do Ulster. O próprio facto do endereço do site do instituto ser o próprio nome de Ian Paisley faz parecer que é um "instituto" de uma pessoa só.

Bernardo

segunda-feira, 17 de maio de 2004

O "Juramento Jesuíta"

Há uns dias o João Vasco do Diário de uns Ateus publicava um artigo sobre o famoso "Juramento Jesuíta", que é uma farsa com mais de 100 anos de idade. A origem exacta do texto do "juramento" é difícil de precisar com exactidão, se bem que poderá estar parcial ou totalmente contida no romance de Charles Didier (1805-1864), Rome Souterraine.

A Internet está cheia de excertos e versões deste pretenso "juramento", sendo que as mais frequentemente citadas, com o título de "Jesuit Oath" ou "Jesuit Extreme Oath of Induction", correspondem a dois textos:

Texto depositado na Biblioteca do Congresso (Washington - EUA), índice de catálogo #66-43354
«I furthermore promise and declare that I will, when opportunity presents, make and wage relentless war, secretly or openly, against all heretics, Protestants and Liberals, as I am directed to do, to extirpate and exterminate them from the face of the whole earth; and that I will spare neither age, sex or condition; and that I will hang, burn, waste, boil, flay, strangle and bury alive these infamous heretics, rip up the stomachs and wombs of their women and crush their infants heads against the walls, in order to annihilate forever their execrable race. That when the same cannot be done openly, I will secretly use the poisoned cup, the strangulating cord, the steel of the poinard dignity, or authority of the person or persons, whatever may be their condition in life, either public or private, as I at any time may be directed so to do by any agent of the Pope or Superior of the Brotherhood of the Holy Faith, of the Society of Jesus.
In confirmation of which, I hereby dedicate my life, my soul and all my corporeal powers, and with this dagger which I now receive, I will subscribe my name written in my own blood, in testimony thereof; and should I prove false or weaken in my determination, may my brethren and fellow soldiers of the Militia of the Pope cut off my hands and my feet, and my throat from ear to ear, my belly opened and sulphur burned therein, with all the punishment that can be inflicted upon me on earth and my soul be tortured by demons in an eternal hell forever!

All of which I, M_______ N_______ , do swear by the blessed Trinity and blessed Sacrament, which I am now to receive, to perform and on my part to keep inviolably; and do call all the heavenly and glorious host of heaven to witness these my real intentions to keep this my oath.

In testimony hereof I take this most holy and blessed Sacrament of the Eucharist, and witness the same further, with my name written with the point of this dagger dipped in my own blood and sealed in the face of this holy convent.»


Escusado será dizer que se pode depositar o que se quiser na Biblioteca de Congresso dos E.U.A., bem como em muitas bibliotecas espalhadas por esse mundo fora. Basta preencher o formulário apropriado. Por isso, o facto deste texto se encontrar depositado na Library of Congress não prova nada. Faz lembrar a não menos mal-cheirosa história de uns Dossiers Secrets de um tal de Henri Lobineau, com uma lista de grão-mestres de uma "irmandade" chamada Prieuré de Sion, que tanta gente leva a sério só porque estes textos se encontram depositados na Bibliothèque Nationale em Paris, quando já se deveria saber bem que os textos foram escritos por Pierre Plantard e Phillipe de Chérisey, sendo o nome de Henri Lobineau apenas um pseudónimo.

Adiante... O texto do "juramento" também se encontra noutro local...

Texto publicado nos Registos do Congresso, ano 1913, página 3216
«I do further promise and declare that I will, when opportunity presents, make and wage relentless war, secretly and openly, against all heretics, Protestants and Masons, as I am directed to do, to extirpate them from the face of the whole earth; and that I will spare neither age, sex nor condition, and that will hang, burn, waste, boil, flay, strangle, and bury alive these infamous heretics; rip up the stomachs and wombs of their women, and crush their infants' heads against the walls in order to annihilate their execrable race. That when the same cannot be done openly I will secretly use the poisonous cup, the strangulation cord, the steel of the poniard, or the leaden bullet, regardless of the honour, rank, dignity or authority of the persons, whatever may be their condition in life, either public or private, as I at any time may be directed so to do by any agents of the Pope or Superior of the Brotherhood of the Holy Father of the Society of Jesus.
In confirmation of which I hereby dedicate my life, soul, and all corporal powers, and with the dagger which I now receive I will subscribe my name written in my blood in testimony thereof; and should I prove false, or weaken in my determination, may my brethren and fellow soldiers of the militia of the Pope cut off my hands and feet and my throat from ear to ear, my belly be opened and sulphur burned therein with all the punishment that can be inflicted upon me on earth, and my soul shall be tortured by demons in eternal hell forever. That I will in voting always vote for a Knight of Columbus in preference to a Protestant, especially a Mason, and that I will leave my party so to do; that if two Catholics are on the ticket I will satisfy myself which is the better supporter of Mother Church and vote accordingly. That I will not deal with or employ a Protestant if in my power to deal with or employ a Catholic. That I will place Catholic girls in Protestant families that a weekly report may be made of the inner movements of the heretics. That I will provide myself with arms and ammunition that I may be in readiness when the word is passed, or I am commanded to defend the Church either as an individual or with the militia of the Pope.
All of which I,_______________, do swear by the blessed Trinity and blessed sacrament which I am now to receive to perform and on part to keep this my oath.

In testimony hereof, I take this most holy and blessed sacrament of the Eucharist and
witness the same further with my name written with the point of this dagger dipped in my
own blood and seal in the face of this holy sacrament.»


Os Congressional Records são os Registos do Congresso dos E.U.A.! Não são, como diz erradamente o João Vasco, nada que se pareça com um "Congressional de Relatórios", que é uma tradução livre e imaginativa que alguém fez da expressão "Congressional Records".

Então de onde vem tudo isto? Como é que estes dois textos, relacionados propositadamente com os Jesuítas em tantos e tantos sites na Internet, vêm parar aos Congressional Records?

Temos que regressar às eleições norte-americanas de 1912, onde para a Pensilvânia concoriam os dois candidatos Eugene C. Bonniwell (democrata) e Thomas S. Butler (republicano). O candidato Bonniwell perdeu, e objectou contra a eleição de Butler em representação do estado da Pensilvânia.
O Comité Eleitoral investigou as objecções de Bonniwell e produziu o relatório 1523 (House Report 1523). Este relatório foi submetido a 15 de Fevereiro de 1913, e a pedido do congressista Olmsted, foi incluido no Congressional Record.

Entre outras objecções, o Eugene Bonniwell fazia menção a uma querela religiosa com os apoiantes de Thomas Butler. Eis os detalhes (no original em inglês):

«The West Chester Village Record is a local newspaper largely owned and controlled by T. L. Eyre, Republican boss of Chester County, and personal representative of Thomas S. Butler. The Chester Republican is a local paper largely owned and controlled by Senator William C. Sproul, a Republican boss, and personal representative of Thomas S. Butler in Delaware County. On August 15, 1912, the West Chester Village Record published the following editorial:

"The Hon. Thomas S. Butler, the Republican nominee for Congress, was born and reared in the Society of Friends, and is proud of his Quaker ancestry. His opponent, Eugene C. Bonniwell, is a Roman Catholic."

On August 28, 1912, the Chester Republican reprinted this editorial. Coincident with the two said editorials messengers in the employ of supporters of Thomas S. Butler traversed the district, having in their possession and circulating a blasphemous and infamous libel, a copy of which is hereto attached, pretended to be an oath of the Knights of Columbus, of which body the contestant [Bonniwell] is a member. So revolting are the terms of this document and so nauseating its pledges that the injury it did not merely to the contestant but also to the Knights of Columbus and to Catholics in general can hardly be measured in terms.

I charge that the circulation of this oath and the publication of the two editorials herein referred to were part of a conspiracy . . . for the purpose of arousing religious rancor and of defeating the Democratic nominee. The Constitution of the United States prohibits any religious test for office. The organization supporting Thomas S. Butler created such a test, blazed bigotry in the hearts and minds of the ignorant, and slandered and vilified a great body of honorable men.

I file no complaint because of adverse election returns. The Democracy of Pennsylvania is inured to adversity. Nor is this complaint registered because of defeat resultant upon faith or race. In these things I own a just pride and do not protest if, because of either, political honors are to be denied men. But when a calumnious, viperish attack upon either faith or race is launched, injecting religious bigotry into the political affairs of this Nation, then this protest is made in the certain confidence that all patriotic men, mindful of the religious as well as the political liberty that the forefathers designed should be our heritage, will rise and strike down the beneficiary of such a treacherous and dastardly movement.

For myself I make no appeal to your honorable body that I may be seated... This I do maintain, that this man, receiving his election under these circumstances, adding the felonies of forged papers, perjured acknowledgements, and violated grand jury to the more wicked crime of religious slander, ought not to be tolerated in the House of Representatives.»


A este texto, Bonniwell anexou um panfleto chamado "Knights of Columbus Oath". Este novo "juramento" é só uma versão expandida do texto panfletário chamado "Juramento Jesuíta" já nosso conhecido.
Nesta página, podemos ver as diferenças entre as várias versões:
http://www.shasta.com/sphaws/jesuitoath.html

O que é curioso é que o panfleto dos apoiantes republicanos do candidado Thomas Butler não falava nos Jesuítas, mas sim numa sociedade chamada Knights of Columbus. À parte deste detalhe, o texto era o mesmo.

Thomas Butler afirmou, na sua carta de resposta, que não acreditava na veracidade do panfleto, e que não era responsável por ele:

«I do not believe in its truthfulness, and so stated my judgment concerning it on November 4, 1912 (as soon as complaint was made to me of its general circulation), through the columns of the West Chester Daily Local News...»

Porque fez parte de uma batalha eleitoral escaldante, o infame texto foi incluido nos Congressional Records. Claro que ninguém sensato assumiria que o Congresso, ao incluir o texto difamatório, o estaria a sancionar ou a validar. Contudo, é o que fazem centenas de pessoas pouco sensatas em vários locais da Internet.

Várias páginas anti-católicas socorrem-se deste pretenso "juramento", sem o enquadrar com o obscuro episódio eleitoral do qual ele fez parte. É o caso do autor Ian Paisley, em The Jesuit Oath Exposed.

Tanta falta de seriedade é chocante. Sobretudo quando o senhor Paisley deveria saber que o texto, conforme aparece nos Congressional Records, menciona uma sociedade chamada Knights of Columbus, e não os Jesuítas. Ao que parece, este texto forjado tem sido útil a muita gente. Por exemplo, uma subtil, mas importante, diferença entre as duas versões está na palavra "Masons" e "Liberals". Ou seja, quando os maçons queriam usar este texto, usavam-no na versão "masons", quando eram os liberais que o queriam aproveitar, trocavam a palavra.

Espero ter tempo para encontrar a origem verdadeira do texto, recorrendo se conseguir ao romance de Charles Didier, Rome Souterraine, que ao que parece, serviu de inspiração para muita gente.

O João Vasco estudou mal as fontes deste libelo difamatório.
Ao fazê-lo, participou na onda difamatória. A evidência de que não devemos acreditar cegamente naquilo que encontramos na Internet, mesmo que nos seja conveniente. Uma simples pesquisa como esta teria permitido ao João Vasco descartar este falso "argumento ateu". Tenho pena, porque na mediocridade intelectual do site Diário de uns Ateus, o João Vasco parece ser, de longe, o mais inteligente, abrangente e culto. Espero que ele me perdoe o atrevimento desta demonstração, porque também eu não sou um perito na matéria, e que seja capaz de aceitar a validade destes argumentos de refutação.

Que a infâmia do "Juramento dos Jesuítas" desapareça de vez.

Bernardo

Fontes:
Jesuit Oath
The Jesuit Oath Debunked
Jesuit apologetic
Guermès, Sophie, "Les écrivains de langue française témoins du Risorgimento"
Resumo de uma participação no seminário "L'Écrivain Dans l'Histoire", Universidade Marc Bloch (Strasbourg II), onde a autora fala sobre Charles Didier e a sua obra Rome Souterraine.

domingo, 16 de maio de 2004

Camões e Dante

(de uma curiosa edição das "Obras Completas de Luís de Camões" impressa em Hamburgo no ano de 1834)

«
Depois que a corporal necessidade
Se satisfez do mantimento nobre,
E na harmonia e doce suavidade
Virão os altos feitos, que descobre;
Tethys, de graça ornada e gravidade,
Para que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Para o felice Gama assi dizia:

Faz-te mercê, Barão, a Sapiencia
Suprema de co'os olhos corporais
Veres o que não póde a vãa sciencia
Dos errados e miseros mortais.
Sigue-me firme e forte, com prudencia,
Por este monte espesso, tu co'os mais.
Assi lhe diz: e o guia por hum mato
Arduo, difficil, duro a humano trato.

Não andão muito, que no erguido cume
Se achárão, onde hum campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis taes, que presume
A vista, que divino chão pizava.
Aqui hum globo vem no ar, que o lume
Clarissimo por elle penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superficie, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De varios orbes, que a divina verga
Compoz, e hum centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,
Nunca s'ergue, ou se abaixa; e hum mesmo rosto
Por toda a parte tem, e em toda a parte
Começa e acaba em fim por divina arte:

Uniforme, perfeito, em si sostido,
Qual em fim o Archetypo, que o creou.
Vendo o Gama este globo, commoviodo
De espanto e de desejo alli ficou.
Diz-lhe a deosa: O transumpto reduzido
Em pequeno volume aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, para que vejas
Por onde vás e irás, e o que desejas.

Vês aqui a grande máchina do mundo,
Etherea, e elemental, que fabricada
Assi foi do saber alto e profundo,
Que he sem princípio e meta limitada.
Quem cérca em derredor este rotundo
Globo e sua superficie tão limada,
He Deus: mas o que he Deos ninguem o entende;
Que a tanto o engenho humano não se estende.
»
- Luis Vaz de Camões - "Os Lusíadas", Canto X, LXXV a LXXX.

Como não pensar imediatamente em Dante, nos primeiríssimos versos da primeira estrofe da Divina Comédia?

«Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura,
ché la diritta via era smarrita.»


Em que selva obscura andaram Dante e Camões? O que encontraram quando dela se libertaram?
O discurso de Tétis ao Gama é uma aula de geografia?
Está Vasco da Gama a contemplar a orbe terrena com os olhos do geógrafo, do navegador?

Ou está a contemplar algo mais?
Camões e Dante faziam parte de uma mesma corrente, a dos Fiéis de Amor. Deixaram-nos, a nós miseráveis e ignorantes homens e mulheres do século XXI, um legado valiosíssimo sob a forma de poema, que é a forma mais subtil e mais alta de expressão literária.

Como é ensinado Camões hoje em dia nas escolas? Como será ensinado Dante nas escolas italianas? Infelizmente, são ambos reféns dos interesses da política e da pequena intelectualidade.
Conseguirá alguma criança portuguesa captar ainda, nos bancos das escolas, um pequeno raio, um pequeno vislumbre de luz, do legado imensamente luminoso de Camões?
Dá que pensar...

Bernardo

sexta-feira, 14 de maio de 2004

Catolicismo e Materialismo II

De novo, António Telmo:

«No mundo árabe e no mundo hebraico, as relações entre heterodoxos e ortodoxos nunca atingiram o ponto de cisão que a história regista no mundo ocidental cristão, nem da parte dos primeiros nem da parte dos segundos e, se é possível, por exemplo, lembrar a excomunhão, de Holanda, de Espinosa, e de Uriel da Costa, a verdade é que os kubbalim judeus ou muçulmanos nunca deixaram de respeitar integralmente a revelação dos profetas e de praticar os ritos da religião. A cisão entre heterodoxia e ortodoxia é a principal causa, no Ocidente, das grandes concepções científicas, elaboradas longe da Igreja e, por fim, contra a Igreja, que se mostra desde o início hostil ao livre pensamento, sem o qual não há filosofia, e à livre imaginação, sem a qual não há poesia. Tais concepções, nascidas da contemplação religiosa dos mistérios do universo, degeneraram, nos seus divulgadores, no materialismo mais estúpido, mas é nesta forma que abrem curso, se tornam prestigiadas pelas suas consequências no domínio da técnica e acabam por se impor ao próprio magistério eclesiástico, nos tempos modernos. Tenta-se então conciliar fé e razão, religião e ciência, mas tardiamente e esquecido ou ignorado já o processo mental esotérico que poderia servir de mediador. Em consequência, têm-se produzido verdadeiras monstruosidades, no domínio da apologética, como essa, por exemplo, de, perante o darwinismo vencedor, se ter chegado ao ponto de defender que Deus insuflou o espírito, o Espírito Santo, no "antropopiteco", como aquela de se vir a garantir o dogma da virgindade de Maria pela fisiologia, para não falar já das várias teses do pensamento de Teillard de Chardin, em que Deus é gerado pela própria matéria.», Filosofia e Kabbalah, páginas 83 e 84.

António Telmo toca na ferida. Toca no ponto exacto. Nas razões reais para a situação da Igreja e da Ciência no mundo moderno. A discussão heterodoxia versus ortodoxia, e a discussão exoterismo versus esoterismo deveria dominar as discussões filosófias e teológicas das mentes pensantes hodiernas. Em vez disso, vemos o mundo científico a entrincheirar-se nas muralhas do materialismo mais primário, a filosofia a perder-se em positivismos e niilismos, e a teologia a tornar-se cada vez mais materialista, aderindo aos erros da ciência moderna, procurando seguir um caminho pseudo-apologético que só pode terminar em desastre: numa contraditória "teologia ateia".

O Portugal de Luís de Camões, de Teixeira de Pascoaes, de Fernando Pessoa, que sempre viveu um catolicismo de pendor heterodoxo, e que nele encontra a sua vida e a sua identidade, poderia servir de archote do pensar contemporâneo, iluminando a senda da Verdade, por onde podemos ser levados ainda hoje pela pena de autores como Álvaro Ribeiro, Sampaio Bruno, José Régio, José Marinho, Leonardo Coimbra, entre outros...

Muitos dos autores desta brilhante corrente intelectual já nos deixaram (recordo agora mais recentemente Orlando Vitorino). Porém, ainda temos António Telmo, ainda temos Pinharanda Gomes, mas infelizmente a pretensa intelligentsia portuguesa actual insiste em condená-los ao pior dos castigos: a indiferença...

Bernardo

Catolicismo e Materialismo I

Convém meditar sobre estas palavras de António Telmo, um dos poucos autores sobreviventes do (intencionalmente) desprezado movimento da Filosofia Portuguesa:

«O ódio que muita gente alimenta em relação aos sacerdotes não resulta tanto de observar a hipocrisia com que alguns ofendem a nossa seriedade moral e religiosa. Eles funcionam como o nosso superego e, nessa qualidade pelo menos, têm nas mãos as chaves dos Céus e dos Infernos. Tornam-nos conscientes do nosso medo. E, se acaso alguém, em vez de ódio, sente respeito e até veneração, o motivo não andará longe de ser o mesmo.
Portadores efémeros da vida, há em nós uma exigência de que as coisas não sejam assim. É-nos difícil compreender e aceitar que a porta dos Infernos tenha sido obra do eterno amor e que seja eterna.
Desta perspectiva, é possível tornar clara a razão por que os nossos poetas e filósofos, sem excepção - falamos evidentemente dos maiores -, tenham abandonado o catolicismo à procura do caminho da liberdade. Não da liberdade política ou mesmo simplesmente religiosa, mas da liberdade que nos liberte de Deus, matendo e aumentando a ideia de Deus. Os espíritos vulgares preferem seguir o caminho do materialismo: depois desta vida é o nada; a consciência é um epifenómeno da matéria que dura enquanto perdura um determinado arranjo de moléculas. É o materialismo uma doutrina de cobardes e de gente de pouca imaginação e nenhuma inteligência. O que é desconcertante é que pessoas de alta espiritualidade e de alguma coragem se comportem perante a morte e durante a vida numa atitude em tudo equivalente à dos materialistas, perturbados apenas por vagos sentimentos de natureza moral. "Pensaremos nisso depois"; "depois logo se vê como é". Na verdade vivemos como se fôssemos imortais. Como se fôssemos eternos.»
- Filosofia e Kabbalah, páginas 137 e 138.

Bernardo

quinta-feira, 13 de maio de 2004

A paranóia deste espectador

Serei paranóico sobre Dan Brown e o seu livro?

Não me parece...
Também é certo que os paranóicos não se vêem como tal.
Tem-me sido sugerido frequentemente, desde que eu instaurei o sistema de comentários nos "Espectadores", que eu deveria ocupar o meu tempo de melhor forma.

É uma maneira um pouco deselegante de se dizer que se discorda de uma opinião.
Convenhamos...

Perante este crescendo de anti-catolicismo, que para tanta gente passa despercebido, não sou capaz de reagir de outra forma senão esta.

Dan Brown é um pobre coitado. Não é ninguém.
Ele nem é a questão central. Frequentemente os joguetes das forças anti-tradicionais nem sabem que o são. Já falei disso em tempos... Trata-se de anti-tradicionalismo inconsciente.

Mas alguns de nós, apesar das nossas limitações de espectadores que tentam estar atentos, simplesmente reagem com repúdio e revolta à infâmia, à mentira e à difamação.

Hei-de reagir a este tipo de manifestações anti-tradicionais enquanto me sentir com forças para tal. O resto é conversa...

Bernardo

PS: Sinceramente não percebo: se estes temas não interessam a ninguém, porquê os comentários a sugerir-me que "mude de vida"? Será que as pessoas que escrevem estes comentários não têm mais nada para fazer?

A Internet é muito grande!
Vão pregar para outra freguesia.

terça-feira, 11 de maio de 2004

Ateísmo e presunção, Kaballah e Islão

O nosso amigo José do Guia dos Perplexos perdoar-me-á o quase plágio do título do seu último artigo, mas não resisto a fazer coro com ele.

De facto, tenho dedicado parte do meu curto tempo livre a trocar umas impressões com a pandilha do "Diário de uns Ateus". À parte do João Vasco, que é claramente a carta fora do baralho, o panorama é desolador em termos de presunção pseudo-intelectual.

Como diz o José, também eu "tive frequentemente a estimulante sensação de o meu ocasional interlocutor me considerar um idiota chapado".

Eu não diria que a sensação era estimulante. Para mim é mais frustrante. Uma sensação de tempo perdido...
Mas ao mesmo tempo, é também uma sensação de ironia...

Explico porquê.

René Guénon, que como sabem é como se fosse um meu "guru", explica que a intelectualidade das ciências modernas (verdadeira Terra Prometida destes nossos amigos ateus), não passa de uma pseudo-intelectualidade. Assim, é claro que esta gente fica furiosa quando eu digo que, para René Guénon, bem como para todo o homem plenamente tradicional, a espiritualidade e a intelectualidade podem andar de mãos dadas.

Para estes senhores, as enumerações divinas "hokmah" (sabedoria) e "binah" (inteligência) que se encontram na árvore dos zéfiros da Kaballah hebraica deverão ser mera retórica... Ou delírios esotéricos...

Uma curta nota sobre o termo "zéfiro", aplicada à árvore da Kaballah: este termo, como explica Guénon, vem do hebreu "sepher" (que também dá o árabe "çifr"), que é a origem etimológica da palavra "cifra" e do verbo "contar". Assim, "cifra" deve ser aqui interpretada não como "código" mas sim como "número" ou como a operação de contar.

Os "zéfiros" da árvore são as "enumerações divinas", ou por outras palavras, a enumeração dos atributos divinos.

A riqueza e complexidade do Islão, que salvou para a posteridade os clássicos gregos do esquecimento, e que rejuvenesceu a filosofia, as artes e as ciências na Idade Média, torna-se bem patente na complexidade do sufismo, e na surpreendente concordância deste com as linhas do esoterismo judaico. Espelhos de Verdade e de Intelectualidade que voam bem acima dos cinzentos e limitados racionalismos, cartesianismos e positivismos dos nossos amigos ateus.

Eles, em contrapartida, falam-nos do Islão como um exército de Bin Ladens... Lembram-nos vezes sem conta que a biblioteca de Alexandria foi queimada em nome de Allah. Como se se pudesse meter tudo no mesmo saco. Como se esse gesto criminoso, grunho e tresloucado, representasse a totalidade do ser islâmico. No meio de tanta pobreza cultural e intelectual, no meio de tanta estreiteza de vistas, o diálogo é difícil.

Bernardo

sexta-feira, 7 de maio de 2004

"O Cómico Da Vinci"

Se não fosse a postura convicta do autor, Dan Brown, o livro The Da Vinci Code até poderia parecer uma sátira literária. Mas não é! É um romance, para o qual o próprio autor admite ter-se baseado em factos reais.

Em Portugal, a polémica em torno desta novela ainda vai no início.
Contudo, e bem, a Agência Ecclesia antecipa-se com algumas explicações que vale a pena seguir:

"O Código Da Vinci" - Quando o objectivo é vender

Apenas discordo do título do artigo.
A Bertrand, acredito-o sinceramente, tem como objectivo único vender e fazer dinheiro.
Não acredito que haja o descaramento por parte da Bertrand de afirmar que o livro traz algo de culturalmente relevante.
Agora, da parte de Dan Brown, já não me parece que haja só vontade de fazer dinheiro, apesar desta poder ser a principal motivação.

Há, em todas as palavras de Dan Brown, um sentimento fortemente anti-católico.
Uma pulsão de niilismo que visa arremeter com todas as forças contra a Igreja Católica, que ele chama infantilmente de "The Vatican". Como se a Igreja se pudesse confundir com a residência do Santo Padre.

Mas o que não falta são confusões na cabeça de Dan Brown. Vários comentadores afirmaram que o próprio título é risível: dizer "O Código Da Vinci", é tão estúpido como dizer "O Evangelho De Nazaré", referindo-se aos ensinamentos de Jesus Cristo.

Enfim, para quem não vê nada de novo na temática escolhida por Dan Brown, tudo isto encontra a sua base nas lendas criadas pelo mitómano Pierre Plantard e o seu amigo Phillipe de Chérisey. Uma "clique" de seguidores alargou o caudal de uma das mais extraordinárias farsas contemporâneas, que é a do Prieuré de Sion, essa pretensa "irmandade" com 900 anos de idade, feita para preservar a "verdadeira fé" no Divino Feminino (ou seja, Maria Madalena - Deus no feminino) e a "linhagem sagrada" dos descendentes (sic) de Jesus e Maria Madalena.

Que quer Dan Brown?
O mesmo que Pierre Plantard... Vingar-se da Igreja Católica vertendo o seu ódio anti-católico na escrita e propagação de mentiras de venda fácil. Aproveitar-se da ignorância generalizada das massas.

O que pode fazer o português que se veja com o romance de Dan Brown nas mãos? Tem três hipóteses:

1. Devolvê-lo à livraria onde o adquiriu ou processar a Bertrand (preferível, mas trabalhoso);
2. Usá-lo para papel higiénico (se a primeira falhar).
3. Lê-lo (boa sorte), e tentar informar-se das "fontes" de Dan Brown. Com algum esforço, tudo o que Dan Brown nos "revela" cai por terra com facilidade ao final de alguns dias de pesquisa.

Bernardo

P.S. Lista resumida dos autores que Brown pilhou:
Henry Lincoln, Michael Baigent, Richard Leigh, Lynn Pickett, Clive Prince, Margaret Starbird, entre tantos, tantos outros...
Contudo, a "propriedade intelectual" da farsa do Prieuré de Sion pertence ao já morto e enterrado Pierre Plantard.