De novo, António Telmo:
«No mundo árabe e no mundo hebraico, as relações entre heterodoxos e ortodoxos nunca atingiram o ponto de cisão que a história regista no mundo ocidental cristão, nem da parte dos primeiros nem da parte dos segundos e, se é possível, por exemplo, lembrar a excomunhão, de Holanda, de Espinosa, e de Uriel da Costa, a verdade é que os kubbalim judeus ou muçulmanos nunca deixaram de respeitar integralmente a revelação dos profetas e de praticar os ritos da religião. A cisão entre heterodoxia e ortodoxia é a principal causa, no Ocidente, das grandes concepções científicas, elaboradas longe da Igreja e, por fim, contra a Igreja, que se mostra desde o início hostil ao livre pensamento, sem o qual não há filosofia, e à livre imaginação, sem a qual não há poesia. Tais concepções, nascidas da contemplação religiosa dos mistérios do universo, degeneraram, nos seus divulgadores, no materialismo mais estúpido, mas é nesta forma que abrem curso, se tornam prestigiadas pelas suas consequências no domínio da técnica e acabam por se impor ao próprio magistério eclesiástico, nos tempos modernos. Tenta-se então conciliar fé e razão, religião e ciência, mas tardiamente e esquecido ou ignorado já o processo mental esotérico que poderia servir de mediador. Em consequência, têm-se produzido verdadeiras monstruosidades, no domínio da apologética, como essa, por exemplo, de, perante o darwinismo vencedor, se ter chegado ao ponto de defender que Deus insuflou o espírito, o Espírito Santo, no "antropopiteco", como aquela de se vir a garantir o dogma da virgindade de Maria pela fisiologia, para não falar já das várias teses do pensamento de Teillard de Chardin, em que Deus é gerado pela própria matéria.», Filosofia e Kabbalah, páginas 83 e 84.
António Telmo toca na ferida. Toca no ponto exacto. Nas razões reais para a situação da Igreja e da Ciência no mundo moderno. A discussão heterodoxia versus ortodoxia, e a discussão exoterismo versus esoterismo deveria dominar as discussões filosófias e teológicas das mentes pensantes hodiernas. Em vez disso, vemos o mundo científico a entrincheirar-se nas muralhas do materialismo mais primário, a filosofia a perder-se em positivismos e niilismos, e a teologia a tornar-se cada vez mais materialista, aderindo aos erros da ciência moderna, procurando seguir um caminho pseudo-apologético que só pode terminar em desastre: numa contraditória "teologia ateia".
O Portugal de Luís de Camões, de Teixeira de Pascoaes, de Fernando Pessoa, que sempre viveu um catolicismo de pendor heterodoxo, e que nele encontra a sua vida e a sua identidade, poderia servir de archote do pensar contemporâneo, iluminando a senda da Verdade, por onde podemos ser levados ainda hoje pela pena de autores como Álvaro Ribeiro, Sampaio Bruno, José Régio, José Marinho, Leonardo Coimbra, entre outros...
Muitos dos autores desta brilhante corrente intelectual já nos deixaram (recordo agora mais recentemente Orlando Vitorino). Porém, ainda temos António Telmo, ainda temos Pinharanda Gomes, mas infelizmente a pretensa intelligentsia portuguesa actual insiste em condená-los ao pior dos castigos: a indiferença...
Bernardo
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