(de uma curiosa edição das "Obras Completas de Luís de Camões" impressa em Hamburgo no ano de 1834)
«
Depois que a corporal necessidade
Se satisfez do mantimento nobre,
E na harmonia e doce suavidade
Virão os altos feitos, que descobre;
Tethys, de graça ornada e gravidade,
Para que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Para o felice Gama assi dizia:
Faz-te mercê, Barão, a Sapiencia
Suprema de co'os olhos corporais
Veres o que não póde a vãa sciencia
Dos errados e miseros mortais.
Sigue-me firme e forte, com prudencia,
Por este monte espesso, tu co'os mais.
Assi lhe diz: e o guia por hum mato
Arduo, difficil, duro a humano trato.
Não andão muito, que no erguido cume
Se achárão, onde hum campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis taes, que presume
A vista, que divino chão pizava.
Aqui hum globo vem no ar, que o lume
Clarissimo por elle penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superficie, claramente.
Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De varios orbes, que a divina verga
Compoz, e hum centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,
Nunca s'ergue, ou se abaixa; e hum mesmo rosto
Por toda a parte tem, e em toda a parte
Começa e acaba em fim por divina arte:
Uniforme, perfeito, em si sostido,
Qual em fim o Archetypo, que o creou.
Vendo o Gama este globo, commoviodo
De espanto e de desejo alli ficou.
Diz-lhe a deosa: O transumpto reduzido
Em pequeno volume aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, para que vejas
Por onde vás e irás, e o que desejas.
Vês aqui a grande máchina do mundo,
Etherea, e elemental, que fabricada
Assi foi do saber alto e profundo,
Que he sem princípio e meta limitada.
Quem cérca em derredor este rotundo
Globo e sua superficie tão limada,
He Deus: mas o que he Deos ninguem o entende;
Que a tanto o engenho humano não se estende.
» - Luis Vaz de Camões - "Os Lusíadas", Canto X, LXXV a LXXX.
Como não pensar imediatamente em Dante, nos primeiríssimos versos da primeira estrofe da Divina Comédia?
«Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura,
ché la diritta via era smarrita.»
Em que selva obscura andaram Dante e Camões? O que encontraram quando dela se libertaram?
O discurso de Tétis ao Gama é uma aula de geografia?
Está Vasco da Gama a contemplar a orbe terrena com os olhos do geógrafo, do navegador?
Ou está a contemplar algo mais?
Camões e Dante faziam parte de uma mesma corrente, a dos Fiéis de Amor. Deixaram-nos, a nós miseráveis e ignorantes homens e mulheres do século XXI, um legado valiosíssimo sob a forma de poema, que é a forma mais subtil e mais alta de expressão literária.
Como é ensinado Camões hoje em dia nas escolas? Como será ensinado Dante nas escolas italianas? Infelizmente, são ambos reféns dos interesses da política e da pequena intelectualidade.
Conseguirá alguma criança portuguesa captar ainda, nos bancos das escolas, um pequeno raio, um pequeno vislumbre de luz, do legado imensamente luminoso de Camões?
Dá que pensar...
Bernardo
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