O artigo de João César das Neves, A enorme derrota da Igreja, publicado no Diário de Notícias no passado dia 19 de Fevereiro, vai de encontro àquela que julgo ser a posição essencial na defesa de questões fundamentais como a do aborto.
Quando se está certo, e a Igreja Católica, juntamente com todos os crentes e não crentes que votaram "não", estavam e estão certos, não se pode abdicar dessa posição de vantagem intelectual, em nome de uma falsa "conciliação" com quem errou (e ganhou), ou em nome de um falso populismo político.
Errar e ganhar são coisas perfeitamente compatíveis.
O "Sim" ganhou no dia 11, mas errou.
Por outro lado, e por simples lógica, o "não" perdeu mas acertou (já estava certo à partida).
Regressamos sempre ao relativismo: quem não sabe em que é que acredita, e que ideias defende, voga sempre ao sabor das marés, das modas, das estratégias políticas, das pequenas e medíocres guerrinhas ideológicas, e perde a sua identidade.
Há que recordar a razão de ser deste referendo: sucedeu que sete magistrados do Tribunal Constitucional votaram a favor da pergunta, contra seis, do dia 15 de Novembro de 2006, dia de triste memória. A vantagem de apenas um voto deveria ter sido claro sinal de que algo estava mal com este referendo. É, no mínimo, legítimo perguntar se a pergunta era ou não constitucional, uma vez que a resposta dada pelo Tribunal Constitucional saiu com apenas um voto de vantagem. Faz-nos supor que outra composição do colectivo poderia ter produzido uma resposta de sinal oposto, e zás! Não havia referendo para ninguém, por violação do Artigo 24º da Constituição (o tal da "inviolabilidade da vida humana")!
Os senhores magistrados que, eticamente confusos, aprovaram esta pergunta são um perfeito exemplo da realidade de uma anomalia intelectual na nossa "moderna" civilização.
Quem leu bem o texto do Acórdão n.º 617/2006, notou que se fala em John Rawls (1921-2002) como quem apela para um nome sonante para defender uma posição indefensável. Esse campeão norte-americano do relativismo ético moderno, John Rawls, defendia que, numa sociedade na qual convivem duas éticas diferentes (a deontológica clássica e a "moderna" utilitarista, por exemplo), a política deveria estar baseada numa estrutura liberal que permitisse a sua coexistência, numa óptica ao estilo de "máximo divisor comum".
Os senhores magistrados não podiam estar mais de acordo com o senhor Rawls:
«8. A reflexão sobre valores numa sociedade democrática, pluralista e de matriz liberal quanto aos direitos fundamentais tem sido objecto privilegiado do pensamento filosófico contemporâneo. Tal reflexão exprime-se na ideia de um “consenso de sobreposição” (overlapping consensus) desenvolvida por JOHN RAWLS, em Political Liberalism, 1993, p. 133 e ss.. O autor concebe a possibilidade de um consenso sobre valores políticos, como o respeito mútuo ou a liberdade, sem o sacrifício de valores mais abrangentes e de visões particulares, mas a partir da diversidade dos valores. Por exemplo, diferentes concepções religiosas podem confluir, sem abandonar a respectiva matriz, num núcleo de valores estritamente políticos.» (negrito meu)
É curioso que a defesa do direito à vida era algo de inegociável há poucos séculos atrás, em pleno Iluminismo. Na altura, tanto ateus como crentes teriam este ponto em comum. Um ateu clássico, não niilista nem anarquista, em pleno século XIX, não abdicaria de defender o direito à vida, e ficaria chocado se esse direito surgisse associado em regime de exclusividade à Religião. Alguns poucos ateus, ainda esclarecidos em plenas trevas modernas, sairam nesta campanha em defesa corajosa do "não" ateu ao aborto livre.
Estes poucos, mas lúcidos, ateus demonstraram uma maior cultura iluminista e racionalista que os distintos senhores magistrados que votaram a favor da pergunta do referendo, mostrando-se como fiéis "discípulos" de Rawls.
É em tempos destes que as palavras sábias de René Guénon (1886-1951) ganham sempre nova luz:
«A civilização moderna aparece na História como uma verdadeira anomalia: de todas as que conhecemos, é a única que se desenvolveu num sentido puramente material, a única também que não se apoia em nenhum princípio de ordem superior. Este desenvolvimento material, que continua há vários séculos e que se acelera cada vez mais, foi acompanhado por uma regressão intelectual, que esse desenvolvimento foi incapaz de compensar. Trata-se, entenda-se bem, da verdadeira e pura intelectualidade, que poderíamos igualmente chamar de espiritualidade, e recusamo-nos a dar tal nome àquilo a que os modernos se têm sobretudo aplicado: o cultivo das ciências experimentais com vista às aplicações práticas a que elas podem dar lugar.» - Regnabit, Junho de 1926, título original do artigo, La Réforme de la mentalité moderne, incorporado na obra Symboles de la Science Sacrée, cap. I.
Este desenvolvimento "puramente material" de que fala Guénon constata-se facilmente na popularidade que alcançaram obras filosóficas como as de John Rawls, e na forma como são usadas, um pouco por todo o confuso mundo ocidental, para "desconstruir" a Ética clássica, para dar umas belas machadadas aos alicerces civilizacionais reconhecidos pelo mundo saído do Iluminismo, que ao seu tempo, ainda concebia uma Ética universal como base indispensável de uma sociedade justa.
É certo que, filosoficamente, o materialismo moderno nasce com Descartes (1596-1650). Mas, nos séculos que se sucederam à transformação cartesiana da Filosofia, a maioria dos adeptos destas ideias novas não abdicava de clamar por uma Ética universal, fraterna e igualitária. Ainda não eram puros materialistas!
Nos nossos tristes tempos, entusiasmados como estamos pela concepção animalesca que fazemos de nós mesmos (meros "homens-máquinas", "homens-animais"), bela herança de Darwin e de Freud, de que servirá ainda a Ética iluminista? De que servirá apelar a "princípios éticos universais" como o do direito a viver?
Hoje em dia, quantos filósofos ateus ainda acreditam na existência destes princípios?
E, em bom rigor, o que é mais chocante, quantos filósofos cristãos contemporâneos ainda acreditam neles?
A afirmação final do materialismo está, finalmente, a chegar. O caminho foi preparado pelos filósofos utilitaristas de matriz cultural anglo-saxónica (pouco dada à Metafísica), que defendem uma pseudo-Ética, melhor dizendo, uma anti-Ética, baseada nos "desejos" e na "maximização da felicidade" como regras de construção de uma "ética moderna". Peter Singer, defensor do infanticídio, é um desses filósofos que alcançaram, ainda em vida, enorme popularidade nos meios académicos do ensino da Filosofia.
Hoje em dia, em pleno Portugal do século XXI, magistrados ideologicamente motivados gostam de recorrer a esta "moderna" anti-Ética para fazer prevalecer, a pouco e pouco, os seus desejos sociais mais profundos, para muitos ainda radicados numa visão marxista da História, para eles "sempre em Progresso". Eles não têm, porventura, a noção de que fazem colapsar a Ética ao aprovar perguntas destas para referendo. Se eles não a têm, como há de a ter o povo ignorante que, sucumbido à argumentação demagógica e populista do PS, do BE e do PCP, votou mal no dia 11 de Fevereiro?
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