domingo, 4 de fevereiro de 2007

O que é ser católico?

Uma notícia recente da Agência Lusa, de 1 de Fevereiro, intitulada "Aborto: católicos pelo "sim" dizem que despenalização não contraria dogmas", dava conta de um grupo de "católicos" que advogava o voto "sim" no referendo sobre o aborto, alegando que era possível ser-se católico e votar "sim". Uma notícia semelhante surgiu também no Público, com o título inacreditavelmente enganador de "Pode ser-se católico e a favor da despenalização do aborto".
Um destes grupos auto-intitulados "católicos", bem conhecido de quem está atento à sub-cultura anti-católica, chama-se Catholics for a Free Choice e é de origem nova-iorquina, estando associado intimamente a clássicos movimentos pró-escolha (para não dizer "pró-aborto"), como a Planned Parenthood Federation of America. Na dita notícia, esse grupo surgia associado, nesta campanha pelo "sim", ao grupo Nós Somos Igreja, uma associação internacional dita "católica" que combate por todas as contra-causas do costume: sacerdócio para as mulheres, fim do celibato obrigatório, acesso livre à contracepção artificial, concórdia com os teólogos dissidentes, entre outras semelhantes.
Sobre estes dois grupos que se intitulam de "católicos" e que nada têm de católico, escreverei em breve outro texto, para evitar tornar este texto demasiado longo.

Para além desta, outra notícia recente no Diário de Notícias, datada de 3 de Fevereiro, e intitulada "São católicos e militam pela despenalização", dava conta de mais uns quantos exemplos de católicos que vão votar "sim" e das suas razões...

Devido a situações destas, que são deploráveis, nunca é demais insistir no facto de que é impossível defender catolicamente o voto "sim". Evidentemente que vários católicos poderão vir a votar "sim", mas se o fizerem estarão a cometer um acto totalmente contraditório com a doutrina que professam. Não existe qualquer coerência entre ser católico e votar "sim". Não é fácil explicar, de forma sintética, porque é que isto é assim, mas vou tentar fazê-lo em poucas frases.
Em primeiro lugar, é certo que a pura despenalização da mulher que aborta a sua gravidez pode ser compatibilizada com o magistério. A doutrina da Igreja não poderia obstar à remoção da aplicação de uma pena, sobretudo se o objectivo fosse sempre o de ter em consideração determinadas circunstâncias desculpabilizantes e aconselhar a mulher, em vez de a punir. Mas deveria ser claro, e só não o é porque a pergunta do referendo é enganadora, que a resposta "sim" permite a legalização do aborto a pedido até às dez semanas. E isso significa que cada voto "sim" é uma aprovação moral e ética à prática do aborto até às dez semanas, e é deste modo que o voto "sim" choca de frente com o que de mais elementar existe no catolicismo em matéria de direitos humanos e de Justiça. É por esta razão, e não por causa da despenalização da mulher, que votar "sim" esbarra contra a essência do ser católico.

E ainda poderíamos afirmar que a despenalização generalizada (a pergunta não especifica que vai despenalizar apenas a mulher que aborta) é dramaticamente injusta: deixa fora do alcance penal o pessoal médico e clínico de ética duvidosa que efectua o aborto com autorização da mulher, sem escrúpulos, sabendo que o aborto, para além de ser uma morte provocada de um ser humano inocente, irá também prejudicar gravemente a mulher. Enquanto que eu poderia concordar com a despenalização da maior parte das mulheres (de novo, concordar com a despenalização de TODAS as mulheres seria demasiado abrangente e injusto), não posso concordar com a despenalização geral de todos os envolvidos no crime do aborto. Contudo, a discordância face à despenalização generalizada do crime de aborto é uma discordância baseada em elementares conceitos de Justiça, e que não pertence, por essa razão, exclusivamente ao domínio do ser católico.

Aqueles que têm seguido este blogue nos últimos anos, recordam-se de uma disputa que aqui teve lugar há uns meses a esta parte, quando referi que era complicado, para não dizer mais, ser-se católico e recusar, por exemplo, a existência do Diabo.
Quando escrevi textos sobre esta questão, fui duramente criticado por muitos católicos que não acreditavam na existência do Diabo e que se sentiam incomodados pelo facto de eu lhes ter dito que não eram católicos coerentes.

Apesar de serem situações bem diferentes na sua gravidade (é bem mais grave querer ser católico e defender o "sim" do que querer ser católico e não acreditar na existência do Diabo), é inegável que têm algo em comum: uma grave confusão acerca do que significa ser católico.
Sem quaisquer pretensões de ser exaustivo ou erudito (não tenho autoridade para tal), parece-me útil abordar esta questão de dois pontos de vista diferentes:

O Pragmático
- Ser católico é ser baptizado: o baptismo é uma marca sacramental indelével na alma, ou seja, na parte psíquica do nosso ser; por outras palavras, o baptismo não se apaga nem pode ser apagado: um apóstata ou um excomungado, mesmo tendo ambos perdido a comunhão eclesial, continua baptizado - nenhum destes dois estados é irreversível, o que mostra bem a força da marca do baptismo
- Ser católico é seguir a doutrina católica, conforme exposta no Catecismo da Igreja Católica; evidentemente, esta doutrina condena objectivamente o aborto provocado e quaisquer medidas que o aprovem, legitimem ou autorizem.

Esta abordagem pragmática tem a vantagem de ser clara e concisa.
Tem, evidentemente, a desvantagem de poder parecer para alguns demasiado simplista, demasiado autoritária, demasiado fria e calculista. Por isso, importa tomar em consideração o ponto de vista histórico, que melhor elucida, na minha opinião, a importância do sensus catholicus que devia reger a vida de qualquer crente católico.

O Histórico
- Ser católico é aderir à doutrina católica apostólica: esta doutrina tem sido transmitida imutável na sua essência desde Jesus Cristo, passando pelos doze apóstolos, passando pelo testemunho dos primeiros cristãos e dos sucessores dos apóstolos, e passando pela tradição da Igreja erigida em torno do sucessor de São Pedro
- Por isso, ser católico é reconhecer a tradição escrita e oral da Igreja (esta última ainda mais importante), que inclui a absorção do Antigo Testamento (com o seu Decálogo que, entre outras coisas, proíbe o homicídio), todo o Novo Testamento, que inclui os quatro evangelhos e as epístolas paulinas, e ainda os importantíssimos primeiros quatro concílios ecuménicos: Niceia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedónia (451); nestes primeiros quatro concílios, a fé católica ficou definida de modo mais nítido e formal, com base na tradição apostólica que remonta a Jesus Cristo

Os dogmas formalizados em concílios ulteriores, e restantes proclamações papais ex cathedra, fazem parte do núcleo imutável da doutrina cristã, porque, apesar da sua "novidade" formal, nada adicionam de verdadeiramente novo à essência da fé, nem alteram ou revogam nada de fundamental nesta mesma fé.
É por esta razão que, no tempo de Pio IX, foi proclamado como dogma de fé a infalibilidade papal em matéria de moral e doutrina católica. É exactamente porque este núcleo doutrinal é imutável que se pode afirmar que o Papa, quando fala acerca deste núcleo (ex cathedra, ou seja, "da sua cátedra" papal), é verdadeiramente infalível. Só podia sê-lo! O dogma da infalibilidade papal é uma constatação de facto, é a formalização dogmática de algo que já era real e que será sempre real.

Por isso, torna-se absurdo e inútil discutir a essência da doutrina católica. Quem o tenta fazer, sejam movimentos como o "Nós Somos Igreja", ou sejam sacerdotes ou leigos que discordam desta essência, apenas demonstra uma de duas coisas: a) ignorância acerca desta essência doutrinal, b) a vontade de destruir ou deformar (a última implica a primeira) esta essência doutrinal.
Como é evidente, ninguém é obrigado a ser católico nem a partilhar desta doutrina. Tais pessoas são livres de formarem as suas próprias Igrejas. O que é inaceitável é que se considere "católico" algo que não partilha da dita doutrina.

Muitas destas confusões nascem também da não diferenciação entre "essência" e "forma". Existe um número indefinido de formas válidas de se ser católico. O sufismo islâmico, é curioso notá-lo, afirma que existem tantos caminhos para Deus quanto o número de seres humanos. Neste caso, é usado o simbolismo geométrico da circunferência, cujo centro é Deus e cujos pontos (indefinidos em número) são os seres humanos, vivos ou mortos. O caminho de cada pessoa para Deus é como um raio que parte de cada pessoa e que se dirige para Deus. O ponto de partida, bem como o caminho que se percorre, é variável (depende de cada pessoa e é apenas único para essa pessoa), mas o sentido do percurso é sempre o mesmo e imutável: para o Centro.

A individualidade, e peculiaridade, da forma de se ser católico está presente no facto de que cada pessoa é uma pessoa diferente, e por isso, cada qual pode seguir o seu caminho católico "à sua maneira". Mas apenas no domínio da forma, e nunca no da essência!
Porque, certamente, do mesmo modo que o caminho certo para Deus é simbolizado pela recta que liga cada ponto ao centro, também o caminho doutrinal católico correcto (ortodoxo) é apenas um para cada pessoa, apesar de ser diferenciado para cada uma. É essa unicidade que melhor serve para definir a imutabilidade e eternidade da doutrina católica.

Aqueles que preconizam a relatividade da essência católica, falando abusivamente em "consciências pessoais", querem, na verdade, um catolicismo "à la carte", como uma pizza cujos ingredientes somos nós a escolher. E isso é inaceitável!
Há também, naqueles que falam em "liberdade de escolher", um grave erro do significado da liberdade para o catolicismo. Cada pessoa é livre de fazer o que quiser da sua vida, inclusive abortar. Contudo, como ensina o catolicismo, cada qual será julgado pela vida que levou. Essa liberdade para errar, uma liberdade inegável e bem real (não somos autómatos!), não implica que a doutrina católica tenha que ser destruída para lá meter à pressão um falso direito de abortar. Abortar nunca poderá ser um direito, por duas razões:

1. Os principais envolvidos, a mãe e o filho, não ganham nada com esse suposto "direito", antes pelo contrário, perdem e muito com o aborto; faz sentido criar direitos que não são benéficos para os envolvidos?

2. Qualquer presumido direito deixa de o ser quando agride outro direito; o direito da mãe em "optar" por matar o seu filho agride de forma inaceitável o seu direito à vida; desta forma, é absurdo falar em "harmonização" ou "ponderação" de direitos, porque se a mãe ganha o "direito" a matar, isso só se faz à custa do sacrifício de outro direito!

Para terminar, podemos, se tivermos boas razões, discordar de certas normas canónicas, ou de certos preceitos secundários emanados da Santa Sé, desde que não sejam questões doutrinais, questões que não ponham em causa a moral e a doutrina católicas. A moral e a doutrina da Igreja são imutáveis e tudo o que o Santo Padre disser ex cathedra acerca delas é matéria infalível.

Ainda um ponto importante: há quem pretenda votar "sim" porque pensa que tal voto vai ajudar a minorar o número de abortos, e consequentemente, salvar mais vidas humanas. Se bem que esta posição poderia ser legítima para alguém que partilhasse de uma ética utilitarista, essa posição é inaceitável no quadro da ética católica, que é essencialmente uma ética deontológica. Neste tipo de éticas, uma má acção, mesmo que traga eventualmente boas consequências, é sempre inaceitável. Por isso, votar "sim" e legitimar a prática do aborto por opção, é uma má acção, mesmo que pudesse minorar o número de abortos. No catolicismo, bem como numa qualquer ética deontológica clássica, os bons fins não justificam nunca os maus meios.
E, mesmo assim, é complicado demonstrar que a legalização do aborto vai reduzir o número de abortos quando as estatísticas, em vários países que o fizeram, apontam precisamente para o contrário, para um aumento exponencial no número de abortos...

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